quarta-feira, 14 de março de 2012

MICHAEL (PLANETA TERRA) JACKSON


Também serve pra morte de Amy Winehouse).

Uma mulher caminhava pela calçada, com jeito de quem tinha saído só pra resolver uma coisa e voltar logo para casa. Nem estava produzida para sair: usava tênis, jeans e camiseta. Outras mulheres passavam por ela, portando sandálias vistosas, sapatos de salto, blusas incrementadas pela moda das lojas e cabelos pintados: louros, avermelhados, matizados. Nenhum cabelo branco à mostra. E a mulher mostrava os seus escancaradamente, com matrizes que se desenhavam aleatoriamente, como arte abstrata.

No meio desse momento foi surpreendida por um microfone que surgiu diante dela, acompanhado de um repórter que não tinha tempo para saber se ela queria ou não ser interrompida. A pergunta era sobre Michael Jackson, que acabava de assombrar o mundo com sua morte. A resposta era previsível, parece que ia ser rápida e foi. A mulher de cabelos grisalhos falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Como artista, Michael Jackson foi o retrato da década de oitenta e como pessoa, o retrato do século vinte”. E achando que a resposta estava de bom tamanho, ameaçou botar marcha. Mas o repórter, rápido, perguntou: por quê?

Aí a mulher respirou e disse: “Os anos oitenta foram marcados pela força fantástica da música de Michael Jackson, pelo brilho genial de suas roupas, pela dança que deslizava como seus pés navegassem no palco, por seus agudos poderosos, pelos contrapontos dos backing vocals e pelos clips geniais que ele deixou para a história”.

E, antes que quisesse escapar de novo, o repórter emendou: “E com o século vinte, qual é a semelhança que a senhora vê?”. A mulher congelou uma rápida mirada num alvo, como o jogador que estuda o caminho da bola diante do pênalti e disse: “Michael Jackson nasceu no berço convulsionado da luta contra o apertheid americano. Os negros queriam voz. Também havia um sonho na cabeça ambiciosa e complicada do pai dos meninos do Jackson Five, quando fez a macabra união de talento com sofrimento. Dentro de sua casa havia uma mina de ouro e aquela jazida tinha que ser explorada e exaurida até o osso. A qualquer preço.

Essa devastação foi exemplar. O menino Michael Jackson sofreu um processo gradual de desertificação e as conseqüências mais dramáticas de um aquecimento global, com enchentes, furacões, envenenamentos e quedas de pontes e barreiras. Michael Jackson conheceu a fama e a riqueza e se deixou seduzir pela decadência, mudando a natureza e a geografia de seu organismo, até ter medo do ar que respirava.

Drogas consentidas mantinham seu ecossistema em pé e foi a elas que recorreu para segurar a maratona de shows que vinham por aí, dando sobrevida à sua carreira e à sua resistência física. Para continuar a produzir seu próprio oxigênio, ele se devastou e se envenenou ainda mais um pouco. Seu limite foi o coração, assim como o Planeta Terra, que também tem coração, você sabia?”.

Do mesmo jeito apressado com que foi abordada, a mulher de cabelos grisalhos se desvencilhou da equipe e seguiu seu caminho.

Lenilde Ramos

NÓS E O PAPA



Tenho acompanhado com interesse os depoimentos das pessoas que tiveram sua vida marcada pela presença de João Paulo II, sempre carregados de uma emoção circunspecta e muita religiosidade. Um segundo ao lado do Papa, uma visão rápida de sua figura passando de papamóvel, um aceno ou uma benção de longe foram para sempre esmiuçados em todos os seus detalhes pelos felizardos que viveram esse privilégio.

Meu nome é Lenilde Ramos e tenho três profissões: jornalista, musicista e produtora de eventos e nunca me desliguei de nenhum desses ofícios. Tenho uma única irmã, Lenilce Ramos, que eu chamo de quase gêmea porque, além de um ano a menos de diferença e um “c” no lugar do meu “d” , ela também faz tudo que eu faço. Somos tão parecidas que até nossa voz confunde as pessoas. Isso já deu muita confusão interessante em nossas vidas.

Fiquei sabendo que João Paulo II viria pela segunda vez ao Brasil dois anos antes. Nessa época eu trabalhava no setor de Comunicação da Missão Salesiana e era voluntária no Hospital São Julião, dedicado ao tratamento de hanseníase, por coincidência, dois lugares-chave da passagem do Papa por Campo Grande. Um ano antes integrei a equipe de produção e começamos a pensar os mínimos detalhes. Seis meses antes eu acordava, me alimentava e dormia vivendo o roteiro do Papa no Hospital São Julião.

As credenciais estavam no fim e minha irmã quase gêmea não se interessava: dizia que ia acompanhar tudo pela tv. Na véspera, não sei o que deu nela, que ficou desesperada querendo ver o Papa a todo custo. Eu também, não sei o que me deu: transferi para ela minha credencial e a levei para dormir no São Julião, porque o movimento ia começar às quatro da manhã com um rastreamento da Polícia Federal.

Ela foi a primeira a pular da cama para curiosar os peritos. Depois preparou-se e foi uma das primeiras a chegar na Capela. Acompanhou a entrada de todos os convidados e não perdeu um detalhe da visita e entrou na fila do beija-mão. Eu recebi a imprensa, fui mestre de cerimônias e, em meu texto, falei que o Papa estava sendo para uma “poderosa estratégia de marketing”, para que a questão da hanseníase tivesse mais visibilidade e respeito no Brasil. No final, fui para o tecladinho tocar e cantar com amigos e pacientes.

Esse era o primeiro compromisso da agenda do Papa em Campo Grande. Dali, ele foi para a missa campal na cidade. A diretora do hospital, Irmã Silvia Vecellio e eu, aproveitamos para descer à cidade para entregar uma carta ao poderoso Gantin, o Cardeal negro que diziam ser o futuro papa. Do São Julião minha irmã quase gêmea encontrou uma carona na comitiva diplomática do Itamaraty e foi para a missa campal com meu salvo-conduto no peito. Furou a fila dos 75 eleitos e comungou das mãos do Papa. Depois da missa, com um calor de quase 40º João Paulo II foi almoçar e descansar na sede da Missão Salesiana.

Como eu trabalhava lá, já tinha visto a preparação do quarto simples do Papa, os detalhes da cama, da cômoda, dos lençóis e das toalhas. É interessante: quando a gente faz produção até curte mais os bastidores e quando vê as coisas acontecendo, a emoção vem junto com pensamentos do tipo: “será que puseram o adoçante certo para aquele Cardeal parecido com o Ugo Tognazzi?” Pois bem, lá estava minha irmã quase gêmea no interior da Missão Salesiana. Após o almoço, o Papa foi cumprimentar os funcionários da casa. Eu já estava em outra função, mas Lenilce entrou na fila e, ao cumprimentá-la, João Paulo II parou um pouquinho e olhou pra ela um pouquinho, certamente pensando com seus botões imaculados: “já vi essa pessoa hoje.”

O próximo compromisso foi na Catedral de Santo Antônio. É claro que minha irmã estava lá e, na fila. O Papa olhou-a mais demoradamente e então sorriu. O dia ainda não tinha terminado para a grande visita. Sua Santidade voltou à Missão Salesiana para jantar com o governador e autoridades. Minha irmã ali do lado do refeitório dos padres, misturada aos assessores e ao povo da produção. Nova fila de cumprimentos. Aí ao vê-la, o Papa não se agüentou: abriu um sorrisão e disse: “Signorina, Lei, un’altra volta!” (É a senhorita mais uma vez) e lhe deu um abração. O povo da fila não entendeu nada. O Papa íntimo da Lenilce?

Mais tarde, formou-se o comboio para o aeroporto. Minha irmã quase gêmea infiltrou-se no meio do cerimonial e quando o Papa a viu na fila dos cumprimentos, despediu-se dela como de um velho amigo. Foi aquele abraço e só faltou dizer: “passa lá em casa”. Minha irmã quase gêmea foi para casa e, para quem só queria ver o Papa pela televisão, foi um dia cheio de emoções.

E, para terminar a história, minha irmã tanto fez que conseguiu se mudar para a Itália um ano depois, em 1992 e está lá até hoje. Morou seus primeiros quatro anos em Roma. Um dia eu falei: “você deve estar toda semana no pé da janela do Papa lá na Praça São Pedro, não é?” Não era, nem nunca mais foi. Ela trabalhou como dama de companhia de idosos vips, passou verões com eles na Sardegna, entrou três vezes na fila dos funerais de Marcelo Mastroiani, trabalhou de faxineira na casa do costureiro Valentino, ajudando a servir jantares para Sharon Stone e Sofia Loren e a última notícia que chegou é que trabalha de segurança no atelier de Giorgio Armani. Mas, o Papa ela nunca procurou nem mais viu. Só pela telvisão.


Lenilde Ramos

O MEU 11 DE SETEMBRO





Breakfast in America

Vocês se lembram de uma música do Eduardo Dusek, chamada Nostradamus, que começa assim: “naquela manhã eu acordei tarde de bode...”. Pois é, o dia 11 de setembro de 2001 amanheceu quente e com o céu claro. Eu estava em Presidente Prudente, tinha tocado na noite anterior e queria alguma coisa nova para o repertório do próximo fim de semana.

O alvo era uma bela coleção de vinil conservada com o maior cuidado e acabei escolhendo um disco do Supertramp: Breakfast in America. Apesar de interessante, a capa não prendeu minha atenção porque, naquela hora, eu estava interessada mesmo no conteúdo. Tirei o disco com o maior cuidado, porque o dono era muito ciumento e botei pra tocar na vitrola.

Mas, aos poucos, o som que vinha da sala começou a me desconcentrar. Era da televisão e fiquei encabulada porque ninguém tinha o hábito de ligar a tv naquela hora. Isso a gente fazia só na hora do almoço para ver as notícias. No começo tentei não ligar, mas as vozes na sala também começaram a chamar a atenção e acabei saindo do quarto para ver o que estava acontecendo.

Na tela, os repórteres da Globo narravam ao vivo o que a imprensa achava ser o acidente de um avião que havia se chocado com uma das torres do World Trade Center. Do jeito que gosto de notícias, fui ficando e deixei o ensaio de lado. Logo vi outro avião atingir a segunda torre e não desgrudei mais da tv até terminar o dia e a gente ter a dimensão de toda aquela tragédia.

Quando voltei para o quarto, recolhi os discos espalhados pela cama sempre prestar muita atenção neles. Fiquei totalmente envolvida por aquela história que marcava o início do século XXI e, naquele período, nunca mais deixei de cantar New York, New York, sempre citando o fato estarrecedor.

Tempos depois voltei ao ponto de partida e, ao bater o olho na capa, não consegui mais tirar os olhos dela. O disco é de 1976 e, nessa época, Supertramp era e continua sendo uma das maiores bandas americanas, só ouvindo pra saber. Reparem nas fotos, começando pelo título do disco: “Café da Manhã na América”. A capa mostra a Ilha de Manhattan montada por copos, pratos e utensílios próprios dessa refeição. A garçonete imita a Estátua da Liberdade e a tocha é um copo de suco de laranja que está bem em cima das Torres Gêmeas.

Até aí tudo bem e vale a criatividade. Mas a logomarca do disco é um avião que voa direto pras Torres Gêmeas e alinha é tão precisa que tem até um risco marcando a trajetória. Outra foto mostra ainda os caras da banda lendo o jornal e, parece que a notícia estava chamando a atenção, porque ele até derrama o açúcar.

Fiquei intrigadíssima com a descoberta, que também foi notada por outras pessoas que curtem o Supertramp como eu, tanto que fizeram até uma brincadeira macabra com a logomarca, transformando-a em Companhia Aérea do Terror. Não foi pra menos. Mas, independente dessa incrível coincidência, quase uma profecia, fica aqui meu tributo ao Supertramp e à pessoa que me fez mergulhar nesse universo musical espetacular, que vai muito além da The Logical Song. Muito mais!

Lenilde Ramos