quarta-feira, 14 de março de 2012

NÓS E O PAPA



Tenho acompanhado com interesse os depoimentos das pessoas que tiveram sua vida marcada pela presença de João Paulo II, sempre carregados de uma emoção circunspecta e muita religiosidade. Um segundo ao lado do Papa, uma visão rápida de sua figura passando de papamóvel, um aceno ou uma benção de longe foram para sempre esmiuçados em todos os seus detalhes pelos felizardos que viveram esse privilégio.

Meu nome é Lenilde Ramos e tenho três profissões: jornalista, musicista e produtora de eventos e nunca me desliguei de nenhum desses ofícios. Tenho uma única irmã, Lenilce Ramos, que eu chamo de quase gêmea porque, além de um ano a menos de diferença e um “c” no lugar do meu “d” , ela também faz tudo que eu faço. Somos tão parecidas que até nossa voz confunde as pessoas. Isso já deu muita confusão interessante em nossas vidas.

Fiquei sabendo que João Paulo II viria pela segunda vez ao Brasil dois anos antes. Nessa época eu trabalhava no setor de Comunicação da Missão Salesiana e era voluntária no Hospital São Julião, dedicado ao tratamento de hanseníase, por coincidência, dois lugares-chave da passagem do Papa por Campo Grande. Um ano antes integrei a equipe de produção e começamos a pensar os mínimos detalhes. Seis meses antes eu acordava, me alimentava e dormia vivendo o roteiro do Papa no Hospital São Julião.

As credenciais estavam no fim e minha irmã quase gêmea não se interessava: dizia que ia acompanhar tudo pela tv. Na véspera, não sei o que deu nela, que ficou desesperada querendo ver o Papa a todo custo. Eu também, não sei o que me deu: transferi para ela minha credencial e a levei para dormir no São Julião, porque o movimento ia começar às quatro da manhã com um rastreamento da Polícia Federal.

Ela foi a primeira a pular da cama para curiosar os peritos. Depois preparou-se e foi uma das primeiras a chegar na Capela. Acompanhou a entrada de todos os convidados e não perdeu um detalhe da visita e entrou na fila do beija-mão. Eu recebi a imprensa, fui mestre de cerimônias e, em meu texto, falei que o Papa estava sendo para uma “poderosa estratégia de marketing”, para que a questão da hanseníase tivesse mais visibilidade e respeito no Brasil. No final, fui para o tecladinho tocar e cantar com amigos e pacientes.

Esse era o primeiro compromisso da agenda do Papa em Campo Grande. Dali, ele foi para a missa campal na cidade. A diretora do hospital, Irmã Silvia Vecellio e eu, aproveitamos para descer à cidade para entregar uma carta ao poderoso Gantin, o Cardeal negro que diziam ser o futuro papa. Do São Julião minha irmã quase gêmea encontrou uma carona na comitiva diplomática do Itamaraty e foi para a missa campal com meu salvo-conduto no peito. Furou a fila dos 75 eleitos e comungou das mãos do Papa. Depois da missa, com um calor de quase 40º João Paulo II foi almoçar e descansar na sede da Missão Salesiana.

Como eu trabalhava lá, já tinha visto a preparação do quarto simples do Papa, os detalhes da cama, da cômoda, dos lençóis e das toalhas. É interessante: quando a gente faz produção até curte mais os bastidores e quando vê as coisas acontecendo, a emoção vem junto com pensamentos do tipo: “será que puseram o adoçante certo para aquele Cardeal parecido com o Ugo Tognazzi?” Pois bem, lá estava minha irmã quase gêmea no interior da Missão Salesiana. Após o almoço, o Papa foi cumprimentar os funcionários da casa. Eu já estava em outra função, mas Lenilce entrou na fila e, ao cumprimentá-la, João Paulo II parou um pouquinho e olhou pra ela um pouquinho, certamente pensando com seus botões imaculados: “já vi essa pessoa hoje.”

O próximo compromisso foi na Catedral de Santo Antônio. É claro que minha irmã estava lá e, na fila. O Papa olhou-a mais demoradamente e então sorriu. O dia ainda não tinha terminado para a grande visita. Sua Santidade voltou à Missão Salesiana para jantar com o governador e autoridades. Minha irmã ali do lado do refeitório dos padres, misturada aos assessores e ao povo da produção. Nova fila de cumprimentos. Aí ao vê-la, o Papa não se agüentou: abriu um sorrisão e disse: “Signorina, Lei, un’altra volta!” (É a senhorita mais uma vez) e lhe deu um abração. O povo da fila não entendeu nada. O Papa íntimo da Lenilce?

Mais tarde, formou-se o comboio para o aeroporto. Minha irmã quase gêmea infiltrou-se no meio do cerimonial e quando o Papa a viu na fila dos cumprimentos, despediu-se dela como de um velho amigo. Foi aquele abraço e só faltou dizer: “passa lá em casa”. Minha irmã quase gêmea foi para casa e, para quem só queria ver o Papa pela televisão, foi um dia cheio de emoções.

E, para terminar a história, minha irmã tanto fez que conseguiu se mudar para a Itália um ano depois, em 1992 e está lá até hoje. Morou seus primeiros quatro anos em Roma. Um dia eu falei: “você deve estar toda semana no pé da janela do Papa lá na Praça São Pedro, não é?” Não era, nem nunca mais foi. Ela trabalhou como dama de companhia de idosos vips, passou verões com eles na Sardegna, entrou três vezes na fila dos funerais de Marcelo Mastroiani, trabalhou de faxineira na casa do costureiro Valentino, ajudando a servir jantares para Sharon Stone e Sofia Loren e a última notícia que chegou é que trabalha de segurança no atelier de Giorgio Armani. Mas, o Papa ela nunca procurou nem mais viu. Só pela telvisão.


Lenilde Ramos

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