quarta-feira, 22 de junho de 2011

SER (FILHA DA) MÃE É PADECER NO PARAÍSO





Já começo dizendo que, com essa crônica, estou me arriscando a um processo caseiro, mas como tudo aconteceu em família, espero que, se pintar qualquer entrevero, que o Foro escolhido seja o recesso do lar. Nessa hora, eu me lembro da música dos Titãs: Família...família...”. É por aí.

A década de setenta estava acabando gloriosamente e nós, entrados nos vinte anos, já sabíamos o que fazer da vida. Os amigos começavam a se espalhar por esse mundão de Deus, perseguindo seus sonhos. Eu continuava firme em Campo Grande, casada e mãe do primeiro filho. Minha irmã tinha ido para Cuiabá, trabalhar numa empresa de automóveis e, nos finais de tarde, ia refrescar a cuca nos barzinhos ao lado da Universidade Federal.

Foi num desses happy hour que ela conheceu um rapaz diferente, recém- chegado do Rio de Janeiro, grandão, bonitão, hiper descolado e engatou com ele a maior conversa. Foi amor à primeira vista e não ligaram pra mais ninguém naquela noite. Na segunda, estavam vidrados um no outro e na terceira, resolveram que a vida não tinha sentido com a distância de alguns bairros que os separavam e resolveram morar juntos.

Foram se conhecendo melhor, como marido e mulher, já que minha mamma italiana diz: “Juntado com fé, casado é”. Depois de alguns meses ela trouxe o companheiro para conhecer Campo Grande, ele se encantou com a cidade, resolveu vir de mudança e alugaram uma casa bem em frente à minha. Maravilha, nada como a família por perto. Nesse período, deu a coincidência de ficarmos grávidas. Eu primeiro e, três meses depois, ela. Foi também nesse tempo que fiquei conhecendo alguns hábitos do casal, que adorava bicho, sem se importar se eram domésticos ou meio selvagens.

Naquela época, ainda não existiam regras e leis para essa convivência ou, se existiam, a gente não tomava muito conhecimento. O povo criava o bicho que desse, sem problema nenhum. Quem não se lembra dos papagaios que aprendiam a cantar até o Hino Nacional? E da belezura que era o jardim do seu Lúdio Coelho, que até parecia um mini-zoológico? Pois bem, fora cachorro e gato, minha irmã e o marido tinham um filhote de jacaré, um filhote de veado e, se bem me lembro, um filhote de capivara. O quintal era de bom tamanho e acomodava bem os bichinhos.

Um dia precisei falar com ela, meio de improviso, atravessei a ruazinha, a porta estava aberta e fui entrando. Não a vi. Chamei, ninguém respondeu e comecei a abrir as portas. De repente, ao abrir o quarto de hóspedes, dou de cara com uma centena de pintinhos amarelinhos, bonitinhos, piando que nem um coro atonal. A luz havia sido rebaixada para aquecê-los e, antes que eu pisasse ou deixasse algum escapar pelo corredor, fechei a porta com cuidado. Que susto!!! Aquilo sim era vontade de criar bicho.

Achei minha irmã no fundo do quintal e falei que não era aconselhável estar grávida e conviver com tanto bicho por perto. Realmente, pouco tempo depois, ela começou a se sentir fraca, debilitada e o primeiro exame foi cruel: Toxoplasmose, doença perigosa causada pelo protozoário Toxoplasma Gondii, que ao atingir gestantes, faz os bebês nascerem com anomalias, alterações físicas e mentais. Fiquei apavorada, com o diagnóstico e também, com a constatação de que o casamento deles já estava mal das pernas.

Minha irmã queria separar e o namorido não pensava bem assim. Queria criar o filho com ela, o primeiro dos dois, tentar construir uma vida juntos e passar por cima das diferenças. Aqui entra um detalhe importante para dizer que minha irmã é maravilhosa, inteligente, quase um gênio para algumas coisas, mas braba que nem “catiça de gato”. Com ela, escreveu não leu, o pau comeu. E, já que estava resolvida, não teve acordo.

O médico falou sério e explicou o grande perigo que o bebê corria e não poderia garantir, de forma alguma, que não nascesse cego, por exemplo. Inclusive alertou-a que a lei a amparava se fosse o caso de fazer um aborto. Ela recusou essa proposta, definitivamente. Diante disso, o médico não pode fazer nada, a não ser, partir para um tratamento rigoroso. Começou aí uma maratona: dar destino aos bichos da casa, consultas periódicas, exames e até punções na espinha. Ela só não estava conseguindo convencer o companheiro a ir embora.

Um belo dia ele sumiu. Isso mesmo, evaporou, sem ir lá em casa nem para se despedir, já que tínhamos boa amizade. Minha irmã não dizia nada, só que ele havia resolvido de uma vez por todas. Eu achava estranha essa explicação e tentei assuntar com os vizinhos. Os dois lados disseram que, depois de uma discussão, o rapaz saiu correndo pelos fundos, pulou o muro e continuou correndo até ninguém vê-lo mais. O tempo foi passando e ele nunca mais apareceu, nem deu notícias.

O único bicho que sobrou foi a pulga que ficou atrás da minha orelha. Enquanto isso, nossas barrigas cresciam vistosas e, apesar do tratamento, dos remédios e preocupações, a gravidez de minha irmã seguia firme. Nem quisemos fazer ultrassom, pra curtir a surpresa. Com todos os cuidados que cercavam os preparativos, o médico afirmou que não havia condições para um parto normal e que ela iria passar por uma cesariana. Com esse aviso, ela não se preocupou mais com os detalhes que eu insistia em lhe passar: exercícios de respiração, ginástica de grávida e preparação psicológica.

Quando ela entrou no sétimo mês, nasceu meu segundo filho, lindo demais, desses bebês rechonchudos e risonhos, de capa de revista. Mesmo com o maiorzinho de três anos e o nenê novo, não deixei de acompanhar os últimos meses de gravidez de minha irmãzinha geniosa, até que chegou finalmente a hora do parto. Deixei o mais velho com os avós, peguei o carro, ajeitei o bebê na cadeirinha e levei minha irmã para a maternidade. Chegando lá, ela foi para um apartamento popular de três leitos, dois já ocupados. Uma mulher estava gemendo com as contrações e a outra tinha acabado de parir e descansava.


As enfermeiras prepararam a parturiente, que trocou a roupa por aquela meia camisola, uma espécie de camisa branca, sem mangas, curta, no meio das coxas e aberta atrás, só amarrada com um lacinho. E sem nada por baixo, óbvio. Tudo pronto para o médico assumir, literalmente, a operação e ele chegou. Só que não era ele. Era outro!!! Uai... cadê o doutor que fez o pré-natal com todo o cuidado, preocupado com a situação do bebê e garantidor da cesariana com hora marcada?

O médico novo não tinha uma cara amistosa e foi falando logo: “O doutor fulano teve que viajar para um congresso na Bahia e pediu que eu fizesse teu parto”. Até aí tudo bem. Era médico, estava vestido de médico e demonstrava muita autoconfiança. Saiu para cuidar de outras coisas e voltou rapidinho, quando as enfermeiras o alertaram que as contrações estavam começando. Ele deu uma olhada na paciente e emendou: “Maravilha. Parece que a senhora vai desenvolver uma excelente dilatação. Ótimo. Não vamos precisar fazer cesárea. Vai ser um belo parto normal!”.

Minha irmã se arrepiou e foi logo dizendo: “Peraí doutor, meu médico ficou quase nove meses na minha orelha dizendo que ia ser cesariana. Não me preparei pra isso e não estou psicologicamente apta pra encarar um parto normal. Faça a cesariana”. O médico encrespou e disse: “Quem resolve se vai ser normal ou cesárea aqui sou eu. A senhora está dilatando bem e vai ser normal !!!”. Aí virou um bate-boca daqueles. Minha irmã falava, o médico retrucava e começou a chegar gente do corredor para ver o que estava acontecendo.

A paciente do lado começou a gemer ainda mais, de nervoso e a que estava dormindo, acordou assustada. A sorte que o nenê dela estava no berçário. Eu entrei no meio dos dois, com meu bebê no colo, tentei puxar o médico para o lado e falei: “Doutor, o senhor não conhece minha irmã. Ela é inflexível e nunca perde uma briga. Seria melhor o senhor fazer a cirurgia pra tudo acabar na santa paz”. Ele respondeu: “A senhora não se meta. Quem dá a última palavra aqui sou eu”. E me expulsou de lá. Mandou que a enfermeira me entregasse os pertences de minha irmã, roupas e bolsa e me despachou para casa dizendo: “Quando tudo terminar, alguém vai ligar avisando”.

Ainda tentei mmm... ôps...ggg... , mas nada adiantou. Peguei as coisas dela junto com meu bebê e fui para o carro. Ele tinha mamado enquanto as enfermeiras depilavam a quase mamãe e logo caiu no sono. Mal cheguei em casa, tocou o telefone. Se existisse celular e eu tivesse um naquela época, a notícia não teria chegado tão rápido. Será que o filho de minha irmã já tinha nascido? Aleluia! Graças a Deus!

Foi o tempo de descer com meu bebê, entrar e pegar o telefone que não parava de tocar. Do outro lado estava minha irmã, a própria. Não era possível que ela mesma estivesse me dando a grande notícia. Alguma coisa est.... Nem deu tempo pra pensar, porque ela berrava no aparelho: “Cadê minha bolsa!!! Quero minha bolsa!!!“. Eu, desesperada, tentando manter a calma perguntava: “O que aconteceu??? O que tem dentro da sua bolsa pra você estar assim. E seu filho, já nasceu???”.

Ela dizia gritando: “Traz logo minha bolsa pra cá. Se esse médico não se convencer com palavras, vou ter que usar outros argumentos !!!”. E eu tentava dizer: “Mas, você não está na sala de parto?”. E ela: “Eu estou aqui na calçada do hospital, num orelhão !!!”. Puta merda, aí eu gelei e, no próprio telefone comecei a ouvir outras vozes misturadas com a dela: “Por favor, senhora. O médico vai fazer a cesariana. Vamos voltar para dentro”. Minhas pernas estavam moles e eu caí no sofá, com uma tremenda batedeira no coração.

Meu Deus, comecei a pensar rápido, ao mesmo tempo que imaginava minha irmã com aquela camisolinha fajuta de paciente, com o traseiro à vista de quem passasse por aquele orelhão e as enfermeiras tentando levá-la para dentro. Sem contar a dilatação, que já devia estar no ponto, porque boas parideiras como somos, não era à toa que o médico novo havia elogiado o panorama. Chamei rápido a vizinha, pedi que cuidasse do meu bebê, que dormia que nem um anjo e corri para abrir a tão desejada bolsa, quando dei de cara com um trinta e oito niquelado, como o daquela música de Délio e Delinha. Uau !!! Era essa bolsa que estava perto do meu bebê na cadeirinha??? Era esse o argumento fatal??? Tremi nas bases e corri para o hospital.

Quando cheguei lá, a maternidade estava de ponta cabeça, num alvoroço de fazer inveja. Todo mundo de olho arregalado, da recepção à sala de parto. Uma enfermeira me avisou que o médico furioso fez a cesariana, costurou a barriga dela e se mandou, espumando, sem nem deixar receita. Disse também que o bebê era uma menina, linda, perfeitinha, sem faltar um dedinho e que o pediatra se espantou com a saúde e a vitalidade da criança. Também me disse que as colegas se encarregaram dos finalmentes do parto e procuraram outro médico para aviar uma receita.

Fui caminhando devagar até o berçário e, emocionada, fiquei contemplando minha sobrinha, que dormia como um anjinho. Nem parece que tinha acabado de nascer, meio carequinha, gordinha, enroladinha num cueiro. Um verdadeiro milagre da natureza! Depois dessa visão, fui ver minha irmã, que também dormia, mas acho que por conta de algum sossega leãozinho, porque ela não iria se entregar tão fácil. Também fiquei um tempão ali, olhando para ela, me lembrando de nossas brigas da infância, dos arranca-rabos de irmã, das peripécias lendárias que a deixaram famosa, da coragem desmedida que ela tinha para as coisas e da paixão com que se entregava às suas vontades. Outro verdadeiro milagre da natureza!

Saí de lá e fui para o mesmo orelhão do último round, contar a novidade para a família. Falei da bolsa para meu marido e ele correu para casa, preocupado. Quando cheguei lá, ele só me olhou e disse: “É de brinquedo”. Respirei fundo e pensei: “Mas, não é brinquedo!”.

Dedico este conto à minha sobrinha, Letícia Helena,
linda de viver, inteligente e talentosa, que faz Artes
Cênicas em Brasília e que já tem um filho chamado
Raul, em homenagem a Raul Seixas.

Lenilde Ramos

segunda-feira, 20 de junho de 2011

LUZES DA RIBALTA


Mato Grosso do Sul tinha acabado de nascer e Campo Grande virou capital. Tudo por aqui era efervescência, tudo por se fazer e todo mundo com a mão na massa. Tive a fantástica oportunidade de compor a equipe de transição que criou a primeira Fundação de Cultura, em 1978 e a honra de ser a primeira técnica da área de música, em 1979. Professora Glorinha Sá Rosa era nossa capitã e, sempre ligada nas raízes e na pluralidade (leu sem tropeçar?), conseguiu que a FUNARTE e o novo Governo se acertassem para que o Projeto Pixinguinha nos incluísse em seu roteiro nacional.

Entramos em 1980 com essa perspectiva e o Pixinguinha estava bombando nos palcos brasileiros. O elenco era uma verdadeira constelação do que havia de melhor na música popular brasileira, desde a velha guarda até a moçada que estava começando. Foi assim que o interior do país travou contatos imediatos de primeiro grau com Moreira da Silva, Cartola, Elizeth Cardoso, Banda de Pífanos de Caruaru, Jackson do Pandeiro, Marlene, Emilinha Borba, Ângela Maria, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Nana Caymi e os iniciantes Djavan, Alceu Valença, Marina Lima e Elba Ramalho, só pra citar alguns. E tudo isso por míseros R$ 6,00, no Teatro Glauce Rocha.

O Pixinguinha deixou saudades e foi escola para toda uma geração de campo-grandenses, quem assistiu e quem trabalhou, acompanhando artistas, diretores e técnicos que formavam as delegações. Cada elenco fazia cinco shows em cada cidade. Chegava domingo, apresentava-se de segunda a sexta e embarcava no sábado para a próxima. No outro domingo começava tudo de novo, com a chegada de uma nova turma. Cada circuito durava sete semanas. Então, era uma euforia constante com a chegada de novas estrelas e figuras diferentes, ousadas, de todos os tipos, cores e performances.

Os produtores responsáveis pelo projeto, em cada uma das capitais, eram todos do Rio de Janeiro, escolhidos a dedo pela FUNARTE. Como técnica da área de música e, atirada como fui, sempre dava um jeito de ir à Cidade Maravilhosa, até por conta da música erudita e outros projetos e assim, fiz amizade com as figuras de lá. Quando chegou a vez de Campo Grande, o pessoal do Pixinguinha já me conhecia o suficiente e, pela primeira vez, sugeriram que não havia necessidade de mandar ninguém do Rio. A produtora de Campo Grande seria eu. Para mim, foi como ganhar na loteria, juntar a fome com a vontade de comer e todos os ditados possíveis e digo a vocês, que todas as histórias que eu vivi nos quatro anos que administrei o projeto, dariam um livro, que começo a escrever agora.

Só para terem uma ideia: nesses quatro anos convivi com umas trezentas pessoas do grande mundo da música brasileira, tive dois filhos, fora o mais velho que cresceu no meio dos artistas. Como os artistas permaneciam uma semana em cada cidade, acabavam ficando entediados e procuravam coisas para passar o tempo. Aí é que surgiam as histórias mais malucas. Para vocês imaginarem: Elizeth Cardoso se encantou com meu bebê de sete meses e pediu para ser a babá dele na sua semana. Na outra, foi Egberto Gismonti que se encantou com o mais velho e cuidou dele pra mim, por uma semana também.

Havia os mais afoitos que não queriam ficar à mercê das kombis que os levavam em grupo para almoços, ensaios e shows e alugavam seus próprios carros. Havia os mais caladinhos, os que faziam amizade e sumiam com a galera pela cidade, os que eram convidados para almoços e jantares chiquérrimos de autoridades e socialites locais, os que organizavam suas próprias festas nos apartamentos do hotel, com as gatinhas da cidade, os discretos, os que desfilavam os modelos mais ousados do verão carioca ou das tardes nova-iorquinas e os que já estavam habituados a viajar, sem precisar de Kombi ou carro alugado. O Pixinguinha passou como uma avalanche por Campo Grande.

Nem sei por onde começar. Poderia até ser por uma história de glamour, como a vinda de Elizeth Cardoso, que coincidiu com a semana do aniversário da cidade, por volta de 26 de agosto. Não era à toa que o título dessa grande dama era A Divina. Elizeth era uma mulher linda, de fino trato e muito divertida. Gostava de caldo de cana, que eu sempre levava para ela nos ensaios. Uma vez quis conhecer a feira livre, de tanto que a gente falava do sobá. A noite estava gelada, Elizeth sentou-se bem pertinho do braseiro dos espetinhos para se aquecer, saiu de lá, tomou um golpe de ar e... perdeu a voz. A voz perdeu a voz e eu gelei!!! O show da próxima noite teve que ser cancelado. Ela passou o dia no Proncor da Maracaju, mas voltou mais altiva e poderosa do que antes e se arrumou toda para o novo show.

A história da rouquidão de Elizeth Cardoso movimentou a sociedade, que lotou o Glauce Rocha. A Divina arrumou-se com um longo branco, rebordado de canutilhos, prendeu os cabelos, colocou brincos e colar maravilhosos e entrou no palco. A noite ainda estava fria, mas ela dispensou a echarpe. A primeira música era um solo, à meia luz, acompanhado apenas por um violão. Eu estava nos bastidores, apreensiva com a divina garganta, quando tive um choque e quase enfartei. Embaixo do praticável (aquele estrado) onde ficava a bateria, um cachorro dormia a sono solto. Pensei milhares de coisas ao mesmo tempo. Mas, como entrar no palco e quebrar o divino clima? Nem pensar!

Os acordes do violão e a voz suave de Elizeth nem arranharam os ouvidos do cão. Mas, quando a música terminou, os aplausos o despertaram. Ai, meu Deus, esse cachorro vai causar um baita de um estrago. E se ele fosse brabo? E se estranhasse a situação e partisse pra cima da divina? E se o público o visse? Qual seria a reação? Nesse meio tempo, começou a segunda música, ainda com voz e violão e o cachorro, pensando que era canção de ninar, só abaixou a cabeça e voltou a dormir. Mas, a próxima tinha bateria, aí a coisa podia ficar feia. Mais que depressa chamei o chefe da segurança.

Ele chegou no meio da música e foi explicando que (naquela época), alguns cachorros, os que eram operados pela Veterinária, acabavam ficando pela Universidade e se achavam donos do pedaço. Como o teatro era quentinho, aquele resolveu ficar por ali. Quando a bateria deu os primeiros requipes, o vira-lata acordou cheio de preguiça e escancarou a boca num bocejo em câmara lenta. Depois se levantou devagar, ainda meio sonâmbulo e se esticou todinho, num alongamento perfeito. Aí eu engoli seco, porque os músicos viram o cão e me olharam, apavorados. No olho, nos combinamos de ninguém se mexer, para não chamar a atenção da divina, deslumbrante em seu vestido branco de estrela de cinema.

Nessa hora, enquanto as primeiras filas esticavam os pescoços querendo entender o que estava se mexendo, se era efeito do show ou o quê, o chefe da segurança entrou rápido no palco e, mais rápido ainda, juntou o cachorro embaixo do braço, sem dar ao bicho nenhuma chance de reação. Eu corri para os fundos, abri a porta de serviço e o homem atirou o cão na noite gelada, como um arremessador de peso num estádio olímpico. Nem deu tempo de ouvir os “caiaim...caiaim...”, porque fechei a porta e chaveei. Ufa, suspiramos juntos. Eu estava meio trêmula e voltei a meu posto na coxia, para enfim, curtir o show. Procurei uma cadeira e sentei bem devagar.

Passaram-se uns quinze minutos e, no meio dos aplausos emocionados da plateia, sinto um vulto passar do meu ladinho. Ai, ui, será que era assombração? Teatros sempre têm disso e o Glauce Rocha não escapava de histórias de fantasmas. Um zelador de lá, sujeito legal, meio vesgo, sempre contava uns causos, mas a gente achava que era mais a vista turva, que fantasma de verdade. Mas aquela eu não quis acreditar. Era o cachorro de novo. O mesmo. De tão acostumado com o lugar, ele já tinha se recomposto, esgueirou-se pela bilheteria vazia (a bilheteira devia estar assistindo), passou pelas cortinas dos fundos, foi beirando a parede, subiu a escadinha (o bicho era de casa mesmo), passou por mim e foi se deitar no mesmo lugar, embaixo do praticável.

Essa entrada triunfal, já com mais iluminação, não deu pra esconder. O público viu que era um cachorro de verdade e vivo!!! Até a divina estranhou a reação das pessoas à sua frente e, antes que ela se virasse, eu mesma fiz como o chefe da segurança. Entrei que nem um relâmpago no palco, abracei o cachorro e saí com ele, que nem um foguete. Com a confusão, o chefe da segurança já estava lá e, dessa vez não arremessou o cachorro. Chamou um ajudante, foram para o estacionamento, pegaram o carro e se mandaram em direção à cidade. Me disse ele, que deixou o cachorro bem longe, no centro e escalou um rapaz para ficar de olho nos arredores do teatro, pelo resto da temporada.

Por ali o cão da ribalta não apareceu ou não teve chance de subir novamente no palco. Mas teve gente que jurou tê-lo visto vagando de novo pela Universidade.

Lenilde Ramos

sexta-feira, 17 de junho de 2011

MARIA GADU, FEIÚRAS E BONITEZAS





Maria Gadú cantou em Campo Grande num começo de noite do primeiro domingo de junho e o show rendeu pra todo mundo. O Parque das Nações Indígenas estava coalhado de gente. Rendeu pra cantora, com certeza um bom cachê, rendeu para os organizadores, para o público que curtiu a voz e a interpretação espetacular dessa quase adolescente e até rendeu para mim, que vendi alguns livros de minha História sem Nome e fui contratada para tocar na festa junina do Espaço Imaginário (Alê Basso estava lá com toda a família).

Rendeu também pra Juci Ibanez, quando disse no Facebook que achou Maria Gadú feia. Minha amiga cantora passou por um verdadeiro corredor polonês virtual, com gente querendo crucificá-la, jogar pedra e enforcá-la com as próprias mãos. A página dela bombou e nunca vi tantos comentários. Alguns, acabaram a amizade ali mesmo e outros a defenderam, separando feiúra de talento artístico e invocando o nariz adunco de Maria Bethânia.

Nessa hora me lembrei dos primos Ramalho, Zé e Elba e da falecida Aracy de Almeida, que Deus a tenha com todo o seu mau humor. Pra não ir muito longe, temos o Paulo Miklos dos Titãs, que não é nenhum Gianechini e, aqui perto, nosso glorioso Paulo Simões, que nunca foi um Adônis e nós mesmas: a geradora da polêmica e quem escreve essa crônica. Já tive meus tempos de glória, corpídeo de gazela e pernonas enfeitadas de minissaias e Juci também já foi mais magrinha, mas acreditamos e defendemos nosso talento. Até assustei a Ju uma vez, quando ela me disse: “E aí, Lelê, vamos unir nossas afinidades musicais e produzir um show. Você tem alguma sugestão de título?”. Pensei, pensei e soltei na lata: “Que tal, Barangas na Menopausa”. Juju levou um susto e suspirou: “Pô, Lelê, também não precisa esculachar, né?”.

Apesar de mergulhada de cabeça no século XXI e despida de preconceitos, confesso que me perdi no Parque das Nações Indígenas, quando anunciaram Maria Gadú, porque o povo começou a gritar e a aplaudir e eu procurava a estrela até perceber que a tinha confundido com um músico. Era ela! Nessa hora, a gente começa a pensar no que é bonito e no que é feio de verdade nesse mundo, na exigência social de você corresponder a um modelo europeu caucasiano e na beleza fantástica de figuras que estão longe dos ditos padrões. Esse caminho rende panos pra mangas filosóficas e nos propõe um exercício crucial de aceitação, principalmente quando a idade vai chegando.

O show da Maria Gadú também me rendeu um questionamento. Cheguei cedo ao Parque das Nações e até a banda Dimitri Pellz entrar, rolou som mecânico. Depois da Dimitri, mais som mecânico. Foi aí que pensei: “Pô, com tanta gente no pedaço, um público maravilhoso, não seria mais útil e produtivo aproveitar o precioso espaço para tocar o som mecânico de nossas bandas? Temos uma cena de rock que faz inveja a muitos estados brasileiros e, aquele momento seria perfeito pra galera ouvir nossos trabalhos, em vez de um som que a gente pode ouvir a qualquer hora, em qualquer rádio, qualquer bar ou qualquer balada”.

Cada tipo de show das estrelas seria uma chance para ocuparmos espaço sonoro, com a riqueza de nossa diversidade musical. Seria bonito investir tudo no que é nosso, valorizar cada centímetro do que é nosso, ocupar cada espaço útil com o que é nosso, agregar valor ao que é nosso, para dividirmos de igual pra igual nosso talento e multiplicarmos nossas possibilidades, assim como uma Maria Gadú encontrou sua chance e tantos outros artistas, feios ou bonitos por aí, também encontraram.

No dia 31 de maio, lancei minha História sem Nome. Fiquei honrada com a força que a Universidade Federal de MS, para que esse projeto se concretizasse e feliz com o apoio da FUNDAC para a cerimônia de lançamento na Morada dos Baís. Os amigos perguntavam: “Quem vai tocar no evento?”. Eu dizia: “Todo mundo”. E eles queriam entender o que eu estava dizendo.

A festa foi bonita e o público, maravilhoso, mas o que me deixou tão orgulhosa quanto lançar meu primeiro livro, foi ter enchido um pen drive de oito giga, com centenas de músicas, de Délio e Delinha a Jennifer Magnética, passando pelo instrumental de Miguelito e as pessoas diziam: “Que som legal. Quem está tocando?” E eu alardeava aos quatro ventos: “É tudo música de Mato Grosso do Sul !!!”. Isso não é bonito?


Lenilde Ramos

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Hino de Antônio João

Antônio João é uma pequena cidade, entre Bela Vista e Ponta Porã, localizada ao Sul de Mato Grosso do Sul, no ponto mais alto da Serra de Maracaju, lugar muito bonito e de horizonte privilegiado. Seu nome homenageia o Tenente Antonio João, herói da Guerra do Paraguai e também guarda passagens ainda mal resolvidas da história do Estado, como o assassinato do líder indígena Marçal de Souza, ocorrido na Aldeia Campestre.

Pois bem, estava eu vendo o jornal da hora do almoço, na televisão, quando aparece matéria falando sobre a saia justa que reinava no lugar, ao descobrirem que o hino da cidade era um plágio gritante do hino de Sinop, município do Norte de Mato Grosso, quase dentro da Floresta Amazônica. As imagens mostravam crianças antônio-joanenses (é assim?) cantando o que não poderia mais ser o hino delas e a indignação do povo e do prefeito que, ainda estava ameaçado de processo pelos sinopenses ou sinopianos, ainda não sei direito.

O engodo foi descoberto, por acaso, quando uma professora de Antônio João foi visitar parentes em Sinop e ouviu o hino em uma solenidade. É claro que ela pensou que os de lá haviam copiado o hino de cá e botou a boca no trombone. O incidente virou notícia, extrapolou as fronteiras municipais, foi parar nos jornais da capital cuiabana e transformou-se em processo contra a pobre Antônio João, pega de surpresa. O que se apurou é que um compositor (já falecido) do Norte, imaginando que ninguém descobriria, só mudou um pouquinho a letra e vendeu a mesma música, não se sabe para quantas pequenas cidades do interiorzão brasileiro.

Eu, que estava muito mal de grana, na mesma hora tive uma ideia: vou entrar em contato com Antônio João propondo uma volta por cima, para ambos os lados: componho um novo hino, bonito, pujante, que lembre as raízes da fronteira, eles dão resposta imediata à população local e à cidade plagiada e seguimos mais felizes, com nossas histórias. O telefone ainda não havia sido cortado e arrisquei um interurbano. Não consegui falar com o prefeito, mas deixei todos os contatos.

Alguns dias depois me liga o Secretário de Governo, curioso para saber quem eu era e, com todo o direito, querendo assuntar se eu daria conta do recado. Mandei material de divulgação por email e ficamos de nos conhecer quando ele viesse a Campo Grande. Também manifestei o desejo de ir a Antônio João para colher dados, conversar com a população e me inspirar com a paisagem e a história do lugar.

Alguns dias depois, nova ligação: “Oi Lenilde, estamos aqui na capital e vamos retornar a Antônio João depois do almoço. Você não quer vir conosco?” Pensei com meus botões, conferi os trocados no bolso e topei na hora. Marcamos encontro na conveniência de um posto de combustível bem no centro da cidade. Desci do moto- táxi e entrei com a sanfona pendurada nas costas. Nem estojo eu tinha mais. O Secretário era muito simpático e disse: “Aproveita e faz aí uma polca paraguaia pra gente”. Era ele e um assessor.

Já toquei em tudo quanto é lugar, menos na zona, como fez minha amiga Helena Meirelles, mas fiquei meio sem jeito de abrir o fole no meio dos clientes, gente entrando e saindo, já me olhando torto, com cara de “o que essa coroa está fazendo com uma sanfona pendurada nas costas”. Dei um jeitinho e falei pra esperarmos um pouco. Eram nove horas da manhã.

De repente toca ao celular e ele me diz: “Olha, a audiência que a gente estava esperando acaba de ser confirmada e temos que adiar a saída. Vamos viajar depois do almoço. Me liga para combinarmos o local”. Consultei de novo os trocados no bolso e vi que não seria possível voltar para casa, descer de novo e almoçar nesse meio tempo. Resolvi ficar ali pelo centro mesmo e comer alguma coisa até dar a hora da partida. Não perderia aquela oportunidade por nada.

Na praça Ary Coelho não ia ser legal, a não ser que eu tocasse umas modas e pusesse um chapéu para aumentar a renda. Rodei um pouco até encontrar um posto de pagamento de contas, com algumas poltronas. Dei um alô para a secretária e fiquei ali, pensando na vida, das nove e meia até a hora do meu salvador da pátria ligar novamente. Isso aconteceu à uma e meia da tarde.

Aproveitei para me lembrar do grande maestro Radamés Gnatalli, gaúcho radicado no Rio de Janeiro, amigo e parceiro de Tom Jobim, uma lenda viva que tive a honra de assessorar quando ele compôs a música do Hino de Mato Grosso do Sul e veio ao recém-nascido Estado para apresentá-la. Que figura! Fui sua fiel escudeira por vários dias, ouvi histórias magníficas, comentários de suas impressões do cerrado e ainda ajudei-o a acudir um dente que estava dando trabalho. Lembrei-me também dos amigos da Academia de Letras, Jorge Siufi, Gonçalves Gomes e outros que criaram os versos do nosso hino.

Pulei no carro com a sanfona e a mochila. No primeiro semáforo, ainda na Afonso Pena, o Secretário me olhou pelo retrovisor e disse: “Por que você não toca o Hino Nacional para nós?”. Pensei com os botões da gaita: “Será que ele quer que eu prove que sei? Tudo bem, ninguém compra gato por lebre à toa, estou no vermelho e vou satisfazer sua vontade, senão ele não me leva”. Puxei o Hino com todo o sentimento, no banco de trás. O homem se emocionou e, baixou os vidros para a rua escutar. Não parei e os carros do lado começaram a emparelhar e acenar. Quando acabei a audição já estávamos na saída de Sidrolândia.

Então ele emendou: “Mas, a senhora só canta hino ou sai mais alguma coisa?”. Olhei pra ele, pensei em Antônio João, fronteira... e tasquei-lhe uma polca paraguaia. Aí o bicho pegou e ele começou a pedir uma música atrás da outra e eu correspondendo. Virou festa. Quando percebi, estávamos parando em Sidrolândia para um café. Corri pro banheiro e escapei de tocar naquela famosa padaria. Foi só voltar ao carro que o baile continuou e o motorista assumiu a função de diretor artístico, me pedindo guarânias, boleros, tangos, modas caipiras e, entre uma e outra, a “Tocando em Frente”, preferida dele.

Chegamos a Maracaju e ele disse: “Tem um camarada aqui que precisa te ouvir. Vamos até lá!”. Chegamos a uma empresa de produzir areia, cascalho e coisas assim. Estranhei porque, em pleno dia de semana e horário de expediente, as máquinas estavam paradas e quase não havia movimento. O empresário apareceu sério, dizendo que um funcionário seu havia sido assassinado com várias facadas. O Secretário não se conformou enquanto não me colocou numa sala, para não assustar os outros e me fez tocar uma especial, prometendo me levar para um show, quando o clima estivesse menos pesado.

Caímos de novo na estrada e eu, mesmo bebendo água mineral, estava totalmente embriagada pela música e fui tocando até chegar ao destino, num pôr do sol belíssimo da Serra de Maracaju. O braço esquerdo estava meio dormente do esforço e, enquanto pensava numa boa chuveirada e uma jantinha leve, já ia fazendo contas na cabeça, pra embutir o show da estrada na conta do hino. Quando desci do carro, o Secretário já tinha avisado uns amigos que esperavam a sanfoneira, com umas geladas e uma carninha assada. Depois desse último esforço, caí na cama que nem pedra e desmaiei de roupa e tudo.

No outro dia, embaixo do chuveiro, ouço a voz de uma senhora me chamando. Era a mãe do Secretário, que tinha me ouvido na noite anterior e me convidava para dar umas voltas com ela, pela cidade. Muito lindo o lugar, tudo limpinho, arborizado e bem cuidado. Tomei café e fui para o carro, quando ouvi uma voz: “Cadê a sanfona?”. Seguinte: não era para eu conhecer a cidade. Era para a cidade me conhecer e assim foi, a manhã todinha. Uma das primeiras paradas foi numa loja de artigos agropecuários, provavelmente meu futuro patrocinador. De repente aparece uma moça com uns papéis para o Secretário assinar. Sim, ele estava lá e disse: “Essa moça é meu braço direito e cuida das finanças da prefeitura e é paraguaia da gema”. Caprichei no merchandising.

Depois do almoço e de, finalmente, conversar com algumas professoras, fui pra baixo de uma sombra e deixei o pensamento viajar. A letra do hino foi chegando, se mostrando e os versos foram nascendo, quase que psicografados. No final da tarde, depois de um bom tereré, chega o Secretário e se espanta de ver a letra pronta. Levou um susto e me deu outro, perguntando se a música também já estava feita. Eu disse: “Calma, parceiro. Essa parte vou fazer em Campo Grande, com calma”. Então, ele emendou: “Olha, a moçada e os casais já estão sabendo que você está na cidade e querem te ouvir. Aqui tem uma lanchonete muito boa. Vamos até lá dar uma palinha?”

Quando cheguei, o circo estava armado, literalmente. Havia uma barraca com equipamento de som, mesinhas na calçada e o povo esperando. Botei mais essa na minha conta imaginária, mandei ver e lá pelas tantas, caí de novo na cama, feito uma pedra. “Caramba, tenho que voltar amanhã”. Amanheceu, arrumei minhas coisinhas e pedi para me despacharem de volta. O Secretário disse: “Olha, temos agora cedo a abertura de um Seminário sobre desenvolvimento. Veio até um palestrante de Campo Grande. Ele apresenta o tema e já garantiu que te dá uma carona”.

Eu conhecia o palestrante e, nessa de esperar a carona, o Secretário me encaixou no cerimonial e acabei abrindo a solenidade com o Hino Nacional. No final da manhã, era só pegar o pagamento e descer a Serra. Mas, cadê o Secretário? Ele tinha ido a Maracaju resolver um negocinho. Caramba, entre Maracaju e Antônio João dava uns bons quilômetros e eu tinha medido essa distância no braço da sanfona. Então, nos levaram ao melhor restaurante da cidade. Depois do almoço voltamos ao local do evento, porque o Secretário estaria nos esperando lá com o pagamento. Ele ainda não tinha chegado, mas havia telefonado pra pedir que eu cantasse de novo para abrir os trabalhos da tarde.

Nessa hora, o palestrante e eu fomos para a prefeitura, que era o lugar mais seguro para nós dois. De repente, chega a moça responsável pelas finanças, ainda emocionada com a polca paraguaia que eu tinha oferecido a ela, no dia anterior. Entrei na sala dela e disse: “Estamos aguardando para receber o pagamento”. Ela perguntou: “Quanto é?”. Juntei as tocadas desde a saída na Afonso Pena e disse: “É tanto”. Ela me pediu um tempo, pegou meus documentos, preparou os papéis, levou para o prefeito assinar e me entregou o cheque. Não dava tempo para esperar o retorno do Secretário, até porque eu poderia ter que emendar a galopera por mais uma noite e caímos na estrada.

Tempos depois a música do hino ficou pronta e acho que o resultado final ficou bonito. Liguei para o Secretário passar em casa quando viesse a Campo Grande. Ele veio, ouviu, gostou e começamos a discutir o preço. Não chegamos a um acordo e paramos depois de alguns rounds para continuar a negociação em outra hora. Um dia ele me liga dizendo: “Oi Lenilde, o prefeito está na capital e gostaria de conhecer o nosso hino. Você não quer vir tocar pra ele?”. Pensei: “Êêêbaaa, vamos retomar as negociações. Mas, onde vocês estão?”. Ele disse: “O prefeito está internado no Proncor. Você não pode trazer a sanfona aqui?”.

Fiquei meio preocupada e disse: “Olha que o corpo clínico vai correr comigo daí”. Pensei e não fiquei muito à vontade de fazer barulho lá e pensei de novo: “Vou fazer melhor. Gravo o hino e mando o CD”. Procurei meu amigo Lúcio Val, companheiro de empreitadas desesperadas atrás de grana e fomos pro estúdio. O Lúcio faleceu no meio do trabalho. Consegui terminar no estúdio do Gelton Borges, antes dele se mudar para Florianópolis. Quando o CD ficou pronto, falei: “Agora que a situação está um pouquinho melhor, eu mesma vou a Antônio João levar o CD”. Procurei me informar e meu amigo Secretário não morava mais lá. Me envolvi com outras coisas, viajei, lancei um livro e pensei: “Tenho que desenrolar essa história do hino. Então, vai ser direto com o prefeito”.

Almocei a fui assistir o jornal na televisão e a primeira notícia que a apresentadora anunciou foi o falecimento do Prefeito de Antônio João, num acidente na estrada para Bela Vista. Senti por ele, um homem novo, na flor da idade. Não ouviu meu hino e a cidade continua sem hino. Mas, a vida continua.

Lenilde Ramos
lenilderamos@gmail.com