quarta-feira, 22 de junho de 2011

SER (FILHA DA) MÃE É PADECER NO PARAÍSO





Já começo dizendo que, com essa crônica, estou me arriscando a um processo caseiro, mas como tudo aconteceu em família, espero que, se pintar qualquer entrevero, que o Foro escolhido seja o recesso do lar. Nessa hora, eu me lembro da música dos Titãs: Família...família...”. É por aí.

A década de setenta estava acabando gloriosamente e nós, entrados nos vinte anos, já sabíamos o que fazer da vida. Os amigos começavam a se espalhar por esse mundão de Deus, perseguindo seus sonhos. Eu continuava firme em Campo Grande, casada e mãe do primeiro filho. Minha irmã tinha ido para Cuiabá, trabalhar numa empresa de automóveis e, nos finais de tarde, ia refrescar a cuca nos barzinhos ao lado da Universidade Federal.

Foi num desses happy hour que ela conheceu um rapaz diferente, recém- chegado do Rio de Janeiro, grandão, bonitão, hiper descolado e engatou com ele a maior conversa. Foi amor à primeira vista e não ligaram pra mais ninguém naquela noite. Na segunda, estavam vidrados um no outro e na terceira, resolveram que a vida não tinha sentido com a distância de alguns bairros que os separavam e resolveram morar juntos.

Foram se conhecendo melhor, como marido e mulher, já que minha mamma italiana diz: “Juntado com fé, casado é”. Depois de alguns meses ela trouxe o companheiro para conhecer Campo Grande, ele se encantou com a cidade, resolveu vir de mudança e alugaram uma casa bem em frente à minha. Maravilha, nada como a família por perto. Nesse período, deu a coincidência de ficarmos grávidas. Eu primeiro e, três meses depois, ela. Foi também nesse tempo que fiquei conhecendo alguns hábitos do casal, que adorava bicho, sem se importar se eram domésticos ou meio selvagens.

Naquela época, ainda não existiam regras e leis para essa convivência ou, se existiam, a gente não tomava muito conhecimento. O povo criava o bicho que desse, sem problema nenhum. Quem não se lembra dos papagaios que aprendiam a cantar até o Hino Nacional? E da belezura que era o jardim do seu Lúdio Coelho, que até parecia um mini-zoológico? Pois bem, fora cachorro e gato, minha irmã e o marido tinham um filhote de jacaré, um filhote de veado e, se bem me lembro, um filhote de capivara. O quintal era de bom tamanho e acomodava bem os bichinhos.

Um dia precisei falar com ela, meio de improviso, atravessei a ruazinha, a porta estava aberta e fui entrando. Não a vi. Chamei, ninguém respondeu e comecei a abrir as portas. De repente, ao abrir o quarto de hóspedes, dou de cara com uma centena de pintinhos amarelinhos, bonitinhos, piando que nem um coro atonal. A luz havia sido rebaixada para aquecê-los e, antes que eu pisasse ou deixasse algum escapar pelo corredor, fechei a porta com cuidado. Que susto!!! Aquilo sim era vontade de criar bicho.

Achei minha irmã no fundo do quintal e falei que não era aconselhável estar grávida e conviver com tanto bicho por perto. Realmente, pouco tempo depois, ela começou a se sentir fraca, debilitada e o primeiro exame foi cruel: Toxoplasmose, doença perigosa causada pelo protozoário Toxoplasma Gondii, que ao atingir gestantes, faz os bebês nascerem com anomalias, alterações físicas e mentais. Fiquei apavorada, com o diagnóstico e também, com a constatação de que o casamento deles já estava mal das pernas.

Minha irmã queria separar e o namorido não pensava bem assim. Queria criar o filho com ela, o primeiro dos dois, tentar construir uma vida juntos e passar por cima das diferenças. Aqui entra um detalhe importante para dizer que minha irmã é maravilhosa, inteligente, quase um gênio para algumas coisas, mas braba que nem “catiça de gato”. Com ela, escreveu não leu, o pau comeu. E, já que estava resolvida, não teve acordo.

O médico falou sério e explicou o grande perigo que o bebê corria e não poderia garantir, de forma alguma, que não nascesse cego, por exemplo. Inclusive alertou-a que a lei a amparava se fosse o caso de fazer um aborto. Ela recusou essa proposta, definitivamente. Diante disso, o médico não pode fazer nada, a não ser, partir para um tratamento rigoroso. Começou aí uma maratona: dar destino aos bichos da casa, consultas periódicas, exames e até punções na espinha. Ela só não estava conseguindo convencer o companheiro a ir embora.

Um belo dia ele sumiu. Isso mesmo, evaporou, sem ir lá em casa nem para se despedir, já que tínhamos boa amizade. Minha irmã não dizia nada, só que ele havia resolvido de uma vez por todas. Eu achava estranha essa explicação e tentei assuntar com os vizinhos. Os dois lados disseram que, depois de uma discussão, o rapaz saiu correndo pelos fundos, pulou o muro e continuou correndo até ninguém vê-lo mais. O tempo foi passando e ele nunca mais apareceu, nem deu notícias.

O único bicho que sobrou foi a pulga que ficou atrás da minha orelha. Enquanto isso, nossas barrigas cresciam vistosas e, apesar do tratamento, dos remédios e preocupações, a gravidez de minha irmã seguia firme. Nem quisemos fazer ultrassom, pra curtir a surpresa. Com todos os cuidados que cercavam os preparativos, o médico afirmou que não havia condições para um parto normal e que ela iria passar por uma cesariana. Com esse aviso, ela não se preocupou mais com os detalhes que eu insistia em lhe passar: exercícios de respiração, ginástica de grávida e preparação psicológica.

Quando ela entrou no sétimo mês, nasceu meu segundo filho, lindo demais, desses bebês rechonchudos e risonhos, de capa de revista. Mesmo com o maiorzinho de três anos e o nenê novo, não deixei de acompanhar os últimos meses de gravidez de minha irmãzinha geniosa, até que chegou finalmente a hora do parto. Deixei o mais velho com os avós, peguei o carro, ajeitei o bebê na cadeirinha e levei minha irmã para a maternidade. Chegando lá, ela foi para um apartamento popular de três leitos, dois já ocupados. Uma mulher estava gemendo com as contrações e a outra tinha acabado de parir e descansava.


As enfermeiras prepararam a parturiente, que trocou a roupa por aquela meia camisola, uma espécie de camisa branca, sem mangas, curta, no meio das coxas e aberta atrás, só amarrada com um lacinho. E sem nada por baixo, óbvio. Tudo pronto para o médico assumir, literalmente, a operação e ele chegou. Só que não era ele. Era outro!!! Uai... cadê o doutor que fez o pré-natal com todo o cuidado, preocupado com a situação do bebê e garantidor da cesariana com hora marcada?

O médico novo não tinha uma cara amistosa e foi falando logo: “O doutor fulano teve que viajar para um congresso na Bahia e pediu que eu fizesse teu parto”. Até aí tudo bem. Era médico, estava vestido de médico e demonstrava muita autoconfiança. Saiu para cuidar de outras coisas e voltou rapidinho, quando as enfermeiras o alertaram que as contrações estavam começando. Ele deu uma olhada na paciente e emendou: “Maravilha. Parece que a senhora vai desenvolver uma excelente dilatação. Ótimo. Não vamos precisar fazer cesárea. Vai ser um belo parto normal!”.

Minha irmã se arrepiou e foi logo dizendo: “Peraí doutor, meu médico ficou quase nove meses na minha orelha dizendo que ia ser cesariana. Não me preparei pra isso e não estou psicologicamente apta pra encarar um parto normal. Faça a cesariana”. O médico encrespou e disse: “Quem resolve se vai ser normal ou cesárea aqui sou eu. A senhora está dilatando bem e vai ser normal !!!”. Aí virou um bate-boca daqueles. Minha irmã falava, o médico retrucava e começou a chegar gente do corredor para ver o que estava acontecendo.

A paciente do lado começou a gemer ainda mais, de nervoso e a que estava dormindo, acordou assustada. A sorte que o nenê dela estava no berçário. Eu entrei no meio dos dois, com meu bebê no colo, tentei puxar o médico para o lado e falei: “Doutor, o senhor não conhece minha irmã. Ela é inflexível e nunca perde uma briga. Seria melhor o senhor fazer a cirurgia pra tudo acabar na santa paz”. Ele respondeu: “A senhora não se meta. Quem dá a última palavra aqui sou eu”. E me expulsou de lá. Mandou que a enfermeira me entregasse os pertences de minha irmã, roupas e bolsa e me despachou para casa dizendo: “Quando tudo terminar, alguém vai ligar avisando”.

Ainda tentei mmm... ôps...ggg... , mas nada adiantou. Peguei as coisas dela junto com meu bebê e fui para o carro. Ele tinha mamado enquanto as enfermeiras depilavam a quase mamãe e logo caiu no sono. Mal cheguei em casa, tocou o telefone. Se existisse celular e eu tivesse um naquela época, a notícia não teria chegado tão rápido. Será que o filho de minha irmã já tinha nascido? Aleluia! Graças a Deus!

Foi o tempo de descer com meu bebê, entrar e pegar o telefone que não parava de tocar. Do outro lado estava minha irmã, a própria. Não era possível que ela mesma estivesse me dando a grande notícia. Alguma coisa est.... Nem deu tempo pra pensar, porque ela berrava no aparelho: “Cadê minha bolsa!!! Quero minha bolsa!!!“. Eu, desesperada, tentando manter a calma perguntava: “O que aconteceu??? O que tem dentro da sua bolsa pra você estar assim. E seu filho, já nasceu???”.

Ela dizia gritando: “Traz logo minha bolsa pra cá. Se esse médico não se convencer com palavras, vou ter que usar outros argumentos !!!”. E eu tentava dizer: “Mas, você não está na sala de parto?”. E ela: “Eu estou aqui na calçada do hospital, num orelhão !!!”. Puta merda, aí eu gelei e, no próprio telefone comecei a ouvir outras vozes misturadas com a dela: “Por favor, senhora. O médico vai fazer a cesariana. Vamos voltar para dentro”. Minhas pernas estavam moles e eu caí no sofá, com uma tremenda batedeira no coração.

Meu Deus, comecei a pensar rápido, ao mesmo tempo que imaginava minha irmã com aquela camisolinha fajuta de paciente, com o traseiro à vista de quem passasse por aquele orelhão e as enfermeiras tentando levá-la para dentro. Sem contar a dilatação, que já devia estar no ponto, porque boas parideiras como somos, não era à toa que o médico novo havia elogiado o panorama. Chamei rápido a vizinha, pedi que cuidasse do meu bebê, que dormia que nem um anjo e corri para abrir a tão desejada bolsa, quando dei de cara com um trinta e oito niquelado, como o daquela música de Délio e Delinha. Uau !!! Era essa bolsa que estava perto do meu bebê na cadeirinha??? Era esse o argumento fatal??? Tremi nas bases e corri para o hospital.

Quando cheguei lá, a maternidade estava de ponta cabeça, num alvoroço de fazer inveja. Todo mundo de olho arregalado, da recepção à sala de parto. Uma enfermeira me avisou que o médico furioso fez a cesariana, costurou a barriga dela e se mandou, espumando, sem nem deixar receita. Disse também que o bebê era uma menina, linda, perfeitinha, sem faltar um dedinho e que o pediatra se espantou com a saúde e a vitalidade da criança. Também me disse que as colegas se encarregaram dos finalmentes do parto e procuraram outro médico para aviar uma receita.

Fui caminhando devagar até o berçário e, emocionada, fiquei contemplando minha sobrinha, que dormia como um anjinho. Nem parece que tinha acabado de nascer, meio carequinha, gordinha, enroladinha num cueiro. Um verdadeiro milagre da natureza! Depois dessa visão, fui ver minha irmã, que também dormia, mas acho que por conta de algum sossega leãozinho, porque ela não iria se entregar tão fácil. Também fiquei um tempão ali, olhando para ela, me lembrando de nossas brigas da infância, dos arranca-rabos de irmã, das peripécias lendárias que a deixaram famosa, da coragem desmedida que ela tinha para as coisas e da paixão com que se entregava às suas vontades. Outro verdadeiro milagre da natureza!

Saí de lá e fui para o mesmo orelhão do último round, contar a novidade para a família. Falei da bolsa para meu marido e ele correu para casa, preocupado. Quando cheguei lá, ele só me olhou e disse: “É de brinquedo”. Respirei fundo e pensei: “Mas, não é brinquedo!”.

Dedico este conto à minha sobrinha, Letícia Helena,
linda de viver, inteligente e talentosa, que faz Artes
Cênicas em Brasília e que já tem um filho chamado
Raul, em homenagem a Raul Seixas.

Lenilde Ramos

2 comentários:

  1. Tô passada, menina! Todo esse furdunço para eu nascer! kkkkkk
    Obrigada pela história, é bom saber um pouco sobre minha origem.
    Beijo.

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  2. Não conheço a história nem a família, mas conheço Raul dos Santos Seixas. Parabéns pelo belo texto. Mato Grosso do Sul esta aos poucos desabrochando seu talento literário.

    Braços

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