quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Hino de Antônio João

Antônio João é uma pequena cidade, entre Bela Vista e Ponta Porã, localizada ao Sul de Mato Grosso do Sul, no ponto mais alto da Serra de Maracaju, lugar muito bonito e de horizonte privilegiado. Seu nome homenageia o Tenente Antonio João, herói da Guerra do Paraguai e também guarda passagens ainda mal resolvidas da história do Estado, como o assassinato do líder indígena Marçal de Souza, ocorrido na Aldeia Campestre.

Pois bem, estava eu vendo o jornal da hora do almoço, na televisão, quando aparece matéria falando sobre a saia justa que reinava no lugar, ao descobrirem que o hino da cidade era um plágio gritante do hino de Sinop, município do Norte de Mato Grosso, quase dentro da Floresta Amazônica. As imagens mostravam crianças antônio-joanenses (é assim?) cantando o que não poderia mais ser o hino delas e a indignação do povo e do prefeito que, ainda estava ameaçado de processo pelos sinopenses ou sinopianos, ainda não sei direito.

O engodo foi descoberto, por acaso, quando uma professora de Antônio João foi visitar parentes em Sinop e ouviu o hino em uma solenidade. É claro que ela pensou que os de lá haviam copiado o hino de cá e botou a boca no trombone. O incidente virou notícia, extrapolou as fronteiras municipais, foi parar nos jornais da capital cuiabana e transformou-se em processo contra a pobre Antônio João, pega de surpresa. O que se apurou é que um compositor (já falecido) do Norte, imaginando que ninguém descobriria, só mudou um pouquinho a letra e vendeu a mesma música, não se sabe para quantas pequenas cidades do interiorzão brasileiro.

Eu, que estava muito mal de grana, na mesma hora tive uma ideia: vou entrar em contato com Antônio João propondo uma volta por cima, para ambos os lados: componho um novo hino, bonito, pujante, que lembre as raízes da fronteira, eles dão resposta imediata à população local e à cidade plagiada e seguimos mais felizes, com nossas histórias. O telefone ainda não havia sido cortado e arrisquei um interurbano. Não consegui falar com o prefeito, mas deixei todos os contatos.

Alguns dias depois me liga o Secretário de Governo, curioso para saber quem eu era e, com todo o direito, querendo assuntar se eu daria conta do recado. Mandei material de divulgação por email e ficamos de nos conhecer quando ele viesse a Campo Grande. Também manifestei o desejo de ir a Antônio João para colher dados, conversar com a população e me inspirar com a paisagem e a história do lugar.

Alguns dias depois, nova ligação: “Oi Lenilde, estamos aqui na capital e vamos retornar a Antônio João depois do almoço. Você não quer vir conosco?” Pensei com meus botões, conferi os trocados no bolso e topei na hora. Marcamos encontro na conveniência de um posto de combustível bem no centro da cidade. Desci do moto- táxi e entrei com a sanfona pendurada nas costas. Nem estojo eu tinha mais. O Secretário era muito simpático e disse: “Aproveita e faz aí uma polca paraguaia pra gente”. Era ele e um assessor.

Já toquei em tudo quanto é lugar, menos na zona, como fez minha amiga Helena Meirelles, mas fiquei meio sem jeito de abrir o fole no meio dos clientes, gente entrando e saindo, já me olhando torto, com cara de “o que essa coroa está fazendo com uma sanfona pendurada nas costas”. Dei um jeitinho e falei pra esperarmos um pouco. Eram nove horas da manhã.

De repente toca ao celular e ele me diz: “Olha, a audiência que a gente estava esperando acaba de ser confirmada e temos que adiar a saída. Vamos viajar depois do almoço. Me liga para combinarmos o local”. Consultei de novo os trocados no bolso e vi que não seria possível voltar para casa, descer de novo e almoçar nesse meio tempo. Resolvi ficar ali pelo centro mesmo e comer alguma coisa até dar a hora da partida. Não perderia aquela oportunidade por nada.

Na praça Ary Coelho não ia ser legal, a não ser que eu tocasse umas modas e pusesse um chapéu para aumentar a renda. Rodei um pouco até encontrar um posto de pagamento de contas, com algumas poltronas. Dei um alô para a secretária e fiquei ali, pensando na vida, das nove e meia até a hora do meu salvador da pátria ligar novamente. Isso aconteceu à uma e meia da tarde.

Aproveitei para me lembrar do grande maestro Radamés Gnatalli, gaúcho radicado no Rio de Janeiro, amigo e parceiro de Tom Jobim, uma lenda viva que tive a honra de assessorar quando ele compôs a música do Hino de Mato Grosso do Sul e veio ao recém-nascido Estado para apresentá-la. Que figura! Fui sua fiel escudeira por vários dias, ouvi histórias magníficas, comentários de suas impressões do cerrado e ainda ajudei-o a acudir um dente que estava dando trabalho. Lembrei-me também dos amigos da Academia de Letras, Jorge Siufi, Gonçalves Gomes e outros que criaram os versos do nosso hino.

Pulei no carro com a sanfona e a mochila. No primeiro semáforo, ainda na Afonso Pena, o Secretário me olhou pelo retrovisor e disse: “Por que você não toca o Hino Nacional para nós?”. Pensei com os botões da gaita: “Será que ele quer que eu prove que sei? Tudo bem, ninguém compra gato por lebre à toa, estou no vermelho e vou satisfazer sua vontade, senão ele não me leva”. Puxei o Hino com todo o sentimento, no banco de trás. O homem se emocionou e, baixou os vidros para a rua escutar. Não parei e os carros do lado começaram a emparelhar e acenar. Quando acabei a audição já estávamos na saída de Sidrolândia.

Então ele emendou: “Mas, a senhora só canta hino ou sai mais alguma coisa?”. Olhei pra ele, pensei em Antônio João, fronteira... e tasquei-lhe uma polca paraguaia. Aí o bicho pegou e ele começou a pedir uma música atrás da outra e eu correspondendo. Virou festa. Quando percebi, estávamos parando em Sidrolândia para um café. Corri pro banheiro e escapei de tocar naquela famosa padaria. Foi só voltar ao carro que o baile continuou e o motorista assumiu a função de diretor artístico, me pedindo guarânias, boleros, tangos, modas caipiras e, entre uma e outra, a “Tocando em Frente”, preferida dele.

Chegamos a Maracaju e ele disse: “Tem um camarada aqui que precisa te ouvir. Vamos até lá!”. Chegamos a uma empresa de produzir areia, cascalho e coisas assim. Estranhei porque, em pleno dia de semana e horário de expediente, as máquinas estavam paradas e quase não havia movimento. O empresário apareceu sério, dizendo que um funcionário seu havia sido assassinado com várias facadas. O Secretário não se conformou enquanto não me colocou numa sala, para não assustar os outros e me fez tocar uma especial, prometendo me levar para um show, quando o clima estivesse menos pesado.

Caímos de novo na estrada e eu, mesmo bebendo água mineral, estava totalmente embriagada pela música e fui tocando até chegar ao destino, num pôr do sol belíssimo da Serra de Maracaju. O braço esquerdo estava meio dormente do esforço e, enquanto pensava numa boa chuveirada e uma jantinha leve, já ia fazendo contas na cabeça, pra embutir o show da estrada na conta do hino. Quando desci do carro, o Secretário já tinha avisado uns amigos que esperavam a sanfoneira, com umas geladas e uma carninha assada. Depois desse último esforço, caí na cama que nem pedra e desmaiei de roupa e tudo.

No outro dia, embaixo do chuveiro, ouço a voz de uma senhora me chamando. Era a mãe do Secretário, que tinha me ouvido na noite anterior e me convidava para dar umas voltas com ela, pela cidade. Muito lindo o lugar, tudo limpinho, arborizado e bem cuidado. Tomei café e fui para o carro, quando ouvi uma voz: “Cadê a sanfona?”. Seguinte: não era para eu conhecer a cidade. Era para a cidade me conhecer e assim foi, a manhã todinha. Uma das primeiras paradas foi numa loja de artigos agropecuários, provavelmente meu futuro patrocinador. De repente aparece uma moça com uns papéis para o Secretário assinar. Sim, ele estava lá e disse: “Essa moça é meu braço direito e cuida das finanças da prefeitura e é paraguaia da gema”. Caprichei no merchandising.

Depois do almoço e de, finalmente, conversar com algumas professoras, fui pra baixo de uma sombra e deixei o pensamento viajar. A letra do hino foi chegando, se mostrando e os versos foram nascendo, quase que psicografados. No final da tarde, depois de um bom tereré, chega o Secretário e se espanta de ver a letra pronta. Levou um susto e me deu outro, perguntando se a música também já estava feita. Eu disse: “Calma, parceiro. Essa parte vou fazer em Campo Grande, com calma”. Então, ele emendou: “Olha, a moçada e os casais já estão sabendo que você está na cidade e querem te ouvir. Aqui tem uma lanchonete muito boa. Vamos até lá dar uma palinha?”

Quando cheguei, o circo estava armado, literalmente. Havia uma barraca com equipamento de som, mesinhas na calçada e o povo esperando. Botei mais essa na minha conta imaginária, mandei ver e lá pelas tantas, caí de novo na cama, feito uma pedra. “Caramba, tenho que voltar amanhã”. Amanheceu, arrumei minhas coisinhas e pedi para me despacharem de volta. O Secretário disse: “Olha, temos agora cedo a abertura de um Seminário sobre desenvolvimento. Veio até um palestrante de Campo Grande. Ele apresenta o tema e já garantiu que te dá uma carona”.

Eu conhecia o palestrante e, nessa de esperar a carona, o Secretário me encaixou no cerimonial e acabei abrindo a solenidade com o Hino Nacional. No final da manhã, era só pegar o pagamento e descer a Serra. Mas, cadê o Secretário? Ele tinha ido a Maracaju resolver um negocinho. Caramba, entre Maracaju e Antônio João dava uns bons quilômetros e eu tinha medido essa distância no braço da sanfona. Então, nos levaram ao melhor restaurante da cidade. Depois do almoço voltamos ao local do evento, porque o Secretário estaria nos esperando lá com o pagamento. Ele ainda não tinha chegado, mas havia telefonado pra pedir que eu cantasse de novo para abrir os trabalhos da tarde.

Nessa hora, o palestrante e eu fomos para a prefeitura, que era o lugar mais seguro para nós dois. De repente, chega a moça responsável pelas finanças, ainda emocionada com a polca paraguaia que eu tinha oferecido a ela, no dia anterior. Entrei na sala dela e disse: “Estamos aguardando para receber o pagamento”. Ela perguntou: “Quanto é?”. Juntei as tocadas desde a saída na Afonso Pena e disse: “É tanto”. Ela me pediu um tempo, pegou meus documentos, preparou os papéis, levou para o prefeito assinar e me entregou o cheque. Não dava tempo para esperar o retorno do Secretário, até porque eu poderia ter que emendar a galopera por mais uma noite e caímos na estrada.

Tempos depois a música do hino ficou pronta e acho que o resultado final ficou bonito. Liguei para o Secretário passar em casa quando viesse a Campo Grande. Ele veio, ouviu, gostou e começamos a discutir o preço. Não chegamos a um acordo e paramos depois de alguns rounds para continuar a negociação em outra hora. Um dia ele me liga dizendo: “Oi Lenilde, o prefeito está na capital e gostaria de conhecer o nosso hino. Você não quer vir tocar pra ele?”. Pensei: “Êêêbaaa, vamos retomar as negociações. Mas, onde vocês estão?”. Ele disse: “O prefeito está internado no Proncor. Você não pode trazer a sanfona aqui?”.

Fiquei meio preocupada e disse: “Olha que o corpo clínico vai correr comigo daí”. Pensei e não fiquei muito à vontade de fazer barulho lá e pensei de novo: “Vou fazer melhor. Gravo o hino e mando o CD”. Procurei meu amigo Lúcio Val, companheiro de empreitadas desesperadas atrás de grana e fomos pro estúdio. O Lúcio faleceu no meio do trabalho. Consegui terminar no estúdio do Gelton Borges, antes dele se mudar para Florianópolis. Quando o CD ficou pronto, falei: “Agora que a situação está um pouquinho melhor, eu mesma vou a Antônio João levar o CD”. Procurei me informar e meu amigo Secretário não morava mais lá. Me envolvi com outras coisas, viajei, lancei um livro e pensei: “Tenho que desenrolar essa história do hino. Então, vai ser direto com o prefeito”.

Almocei a fui assistir o jornal na televisão e a primeira notícia que a apresentadora anunciou foi o falecimento do Prefeito de Antônio João, num acidente na estrada para Bela Vista. Senti por ele, um homem novo, na flor da idade. Não ouviu meu hino e a cidade continua sem hino. Mas, a vida continua.

Lenilde Ramos
lenilderamos@gmail.com

Um comentário:

  1. Grande Léia, a Palavra de DEus diz que esxiste tempo pra tudo debaixo do céu, quem sabe um dia desses isso acaba virando e seu canto mais uma vez vai marcar a história de MS.
    Quero muito sentar com vc, qdo chegar ai dia 21 vou te ligar.
    Mande seu celular por depoimento.
    bjs

    ResponderExcluir