segunda-feira, 20 de junho de 2011

LUZES DA RIBALTA


Mato Grosso do Sul tinha acabado de nascer e Campo Grande virou capital. Tudo por aqui era efervescência, tudo por se fazer e todo mundo com a mão na massa. Tive a fantástica oportunidade de compor a equipe de transição que criou a primeira Fundação de Cultura, em 1978 e a honra de ser a primeira técnica da área de música, em 1979. Professora Glorinha Sá Rosa era nossa capitã e, sempre ligada nas raízes e na pluralidade (leu sem tropeçar?), conseguiu que a FUNARTE e o novo Governo se acertassem para que o Projeto Pixinguinha nos incluísse em seu roteiro nacional.

Entramos em 1980 com essa perspectiva e o Pixinguinha estava bombando nos palcos brasileiros. O elenco era uma verdadeira constelação do que havia de melhor na música popular brasileira, desde a velha guarda até a moçada que estava começando. Foi assim que o interior do país travou contatos imediatos de primeiro grau com Moreira da Silva, Cartola, Elizeth Cardoso, Banda de Pífanos de Caruaru, Jackson do Pandeiro, Marlene, Emilinha Borba, Ângela Maria, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Nana Caymi e os iniciantes Djavan, Alceu Valença, Marina Lima e Elba Ramalho, só pra citar alguns. E tudo isso por míseros R$ 6,00, no Teatro Glauce Rocha.

O Pixinguinha deixou saudades e foi escola para toda uma geração de campo-grandenses, quem assistiu e quem trabalhou, acompanhando artistas, diretores e técnicos que formavam as delegações. Cada elenco fazia cinco shows em cada cidade. Chegava domingo, apresentava-se de segunda a sexta e embarcava no sábado para a próxima. No outro domingo começava tudo de novo, com a chegada de uma nova turma. Cada circuito durava sete semanas. Então, era uma euforia constante com a chegada de novas estrelas e figuras diferentes, ousadas, de todos os tipos, cores e performances.

Os produtores responsáveis pelo projeto, em cada uma das capitais, eram todos do Rio de Janeiro, escolhidos a dedo pela FUNARTE. Como técnica da área de música e, atirada como fui, sempre dava um jeito de ir à Cidade Maravilhosa, até por conta da música erudita e outros projetos e assim, fiz amizade com as figuras de lá. Quando chegou a vez de Campo Grande, o pessoal do Pixinguinha já me conhecia o suficiente e, pela primeira vez, sugeriram que não havia necessidade de mandar ninguém do Rio. A produtora de Campo Grande seria eu. Para mim, foi como ganhar na loteria, juntar a fome com a vontade de comer e todos os ditados possíveis e digo a vocês, que todas as histórias que eu vivi nos quatro anos que administrei o projeto, dariam um livro, que começo a escrever agora.

Só para terem uma ideia: nesses quatro anos convivi com umas trezentas pessoas do grande mundo da música brasileira, tive dois filhos, fora o mais velho que cresceu no meio dos artistas. Como os artistas permaneciam uma semana em cada cidade, acabavam ficando entediados e procuravam coisas para passar o tempo. Aí é que surgiam as histórias mais malucas. Para vocês imaginarem: Elizeth Cardoso se encantou com meu bebê de sete meses e pediu para ser a babá dele na sua semana. Na outra, foi Egberto Gismonti que se encantou com o mais velho e cuidou dele pra mim, por uma semana também.

Havia os mais afoitos que não queriam ficar à mercê das kombis que os levavam em grupo para almoços, ensaios e shows e alugavam seus próprios carros. Havia os mais caladinhos, os que faziam amizade e sumiam com a galera pela cidade, os que eram convidados para almoços e jantares chiquérrimos de autoridades e socialites locais, os que organizavam suas próprias festas nos apartamentos do hotel, com as gatinhas da cidade, os discretos, os que desfilavam os modelos mais ousados do verão carioca ou das tardes nova-iorquinas e os que já estavam habituados a viajar, sem precisar de Kombi ou carro alugado. O Pixinguinha passou como uma avalanche por Campo Grande.

Nem sei por onde começar. Poderia até ser por uma história de glamour, como a vinda de Elizeth Cardoso, que coincidiu com a semana do aniversário da cidade, por volta de 26 de agosto. Não era à toa que o título dessa grande dama era A Divina. Elizeth era uma mulher linda, de fino trato e muito divertida. Gostava de caldo de cana, que eu sempre levava para ela nos ensaios. Uma vez quis conhecer a feira livre, de tanto que a gente falava do sobá. A noite estava gelada, Elizeth sentou-se bem pertinho do braseiro dos espetinhos para se aquecer, saiu de lá, tomou um golpe de ar e... perdeu a voz. A voz perdeu a voz e eu gelei!!! O show da próxima noite teve que ser cancelado. Ela passou o dia no Proncor da Maracaju, mas voltou mais altiva e poderosa do que antes e se arrumou toda para o novo show.

A história da rouquidão de Elizeth Cardoso movimentou a sociedade, que lotou o Glauce Rocha. A Divina arrumou-se com um longo branco, rebordado de canutilhos, prendeu os cabelos, colocou brincos e colar maravilhosos e entrou no palco. A noite ainda estava fria, mas ela dispensou a echarpe. A primeira música era um solo, à meia luz, acompanhado apenas por um violão. Eu estava nos bastidores, apreensiva com a divina garganta, quando tive um choque e quase enfartei. Embaixo do praticável (aquele estrado) onde ficava a bateria, um cachorro dormia a sono solto. Pensei milhares de coisas ao mesmo tempo. Mas, como entrar no palco e quebrar o divino clima? Nem pensar!

Os acordes do violão e a voz suave de Elizeth nem arranharam os ouvidos do cão. Mas, quando a música terminou, os aplausos o despertaram. Ai, meu Deus, esse cachorro vai causar um baita de um estrago. E se ele fosse brabo? E se estranhasse a situação e partisse pra cima da divina? E se o público o visse? Qual seria a reação? Nesse meio tempo, começou a segunda música, ainda com voz e violão e o cachorro, pensando que era canção de ninar, só abaixou a cabeça e voltou a dormir. Mas, a próxima tinha bateria, aí a coisa podia ficar feia. Mais que depressa chamei o chefe da segurança.

Ele chegou no meio da música e foi explicando que (naquela época), alguns cachorros, os que eram operados pela Veterinária, acabavam ficando pela Universidade e se achavam donos do pedaço. Como o teatro era quentinho, aquele resolveu ficar por ali. Quando a bateria deu os primeiros requipes, o vira-lata acordou cheio de preguiça e escancarou a boca num bocejo em câmara lenta. Depois se levantou devagar, ainda meio sonâmbulo e se esticou todinho, num alongamento perfeito. Aí eu engoli seco, porque os músicos viram o cão e me olharam, apavorados. No olho, nos combinamos de ninguém se mexer, para não chamar a atenção da divina, deslumbrante em seu vestido branco de estrela de cinema.

Nessa hora, enquanto as primeiras filas esticavam os pescoços querendo entender o que estava se mexendo, se era efeito do show ou o quê, o chefe da segurança entrou rápido no palco e, mais rápido ainda, juntou o cachorro embaixo do braço, sem dar ao bicho nenhuma chance de reação. Eu corri para os fundos, abri a porta de serviço e o homem atirou o cão na noite gelada, como um arremessador de peso num estádio olímpico. Nem deu tempo de ouvir os “caiaim...caiaim...”, porque fechei a porta e chaveei. Ufa, suspiramos juntos. Eu estava meio trêmula e voltei a meu posto na coxia, para enfim, curtir o show. Procurei uma cadeira e sentei bem devagar.

Passaram-se uns quinze minutos e, no meio dos aplausos emocionados da plateia, sinto um vulto passar do meu ladinho. Ai, ui, será que era assombração? Teatros sempre têm disso e o Glauce Rocha não escapava de histórias de fantasmas. Um zelador de lá, sujeito legal, meio vesgo, sempre contava uns causos, mas a gente achava que era mais a vista turva, que fantasma de verdade. Mas aquela eu não quis acreditar. Era o cachorro de novo. O mesmo. De tão acostumado com o lugar, ele já tinha se recomposto, esgueirou-se pela bilheteria vazia (a bilheteira devia estar assistindo), passou pelas cortinas dos fundos, foi beirando a parede, subiu a escadinha (o bicho era de casa mesmo), passou por mim e foi se deitar no mesmo lugar, embaixo do praticável.

Essa entrada triunfal, já com mais iluminação, não deu pra esconder. O público viu que era um cachorro de verdade e vivo!!! Até a divina estranhou a reação das pessoas à sua frente e, antes que ela se virasse, eu mesma fiz como o chefe da segurança. Entrei que nem um relâmpago no palco, abracei o cachorro e saí com ele, que nem um foguete. Com a confusão, o chefe da segurança já estava lá e, dessa vez não arremessou o cachorro. Chamou um ajudante, foram para o estacionamento, pegaram o carro e se mandaram em direção à cidade. Me disse ele, que deixou o cachorro bem longe, no centro e escalou um rapaz para ficar de olho nos arredores do teatro, pelo resto da temporada.

Por ali o cão da ribalta não apareceu ou não teve chance de subir novamente no palco. Mas teve gente que jurou tê-lo visto vagando de novo pela Universidade.

Lenilde Ramos

5 comentários:

  1. Maravilha de história Lenilde...Vai abrindo o Baú que a coisa tá esquentando!!!

    Queremos mais!!!

    Ale Basso

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  2. No nosso site tem um lugar especial pras histórias da infância!! Memórias do Futuro! Coloca uma por favor!!
    www.espacoimaginario.com

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  3. teu verbo que já encantava de música, agora delicia de prosa... bem bom e quanto mais melhor! abraço grande

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  4. q espetáculo...
    parabéns miga...
    sucesso sempre...

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  5. Então, amiga Lenilde, aquele dito "Todo artista tem que ir aonde o povo está", transformou-se para você: "Todo artista tem de ir aonde os filhos dos artistas estão". Avalio o quanto lhe honra ter na memória esses momentos em que a divina Elizeth Cardoso e o multiinstrumentista Egberto simpatizaram-se e cuidaram de seus filhos.

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