quarta-feira, 14 de março de 2012

MICHAEL (PLANETA TERRA) JACKSON


Também serve pra morte de Amy Winehouse).

Uma mulher caminhava pela calçada, com jeito de quem tinha saído só pra resolver uma coisa e voltar logo para casa. Nem estava produzida para sair: usava tênis, jeans e camiseta. Outras mulheres passavam por ela, portando sandálias vistosas, sapatos de salto, blusas incrementadas pela moda das lojas e cabelos pintados: louros, avermelhados, matizados. Nenhum cabelo branco à mostra. E a mulher mostrava os seus escancaradamente, com matrizes que se desenhavam aleatoriamente, como arte abstrata.

No meio desse momento foi surpreendida por um microfone que surgiu diante dela, acompanhado de um repórter que não tinha tempo para saber se ela queria ou não ser interrompida. A pergunta era sobre Michael Jackson, que acabava de assombrar o mundo com sua morte. A resposta era previsível, parece que ia ser rápida e foi. A mulher de cabelos grisalhos falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Como artista, Michael Jackson foi o retrato da década de oitenta e como pessoa, o retrato do século vinte”. E achando que a resposta estava de bom tamanho, ameaçou botar marcha. Mas o repórter, rápido, perguntou: por quê?

Aí a mulher respirou e disse: “Os anos oitenta foram marcados pela força fantástica da música de Michael Jackson, pelo brilho genial de suas roupas, pela dança que deslizava como seus pés navegassem no palco, por seus agudos poderosos, pelos contrapontos dos backing vocals e pelos clips geniais que ele deixou para a história”.

E, antes que quisesse escapar de novo, o repórter emendou: “E com o século vinte, qual é a semelhança que a senhora vê?”. A mulher congelou uma rápida mirada num alvo, como o jogador que estuda o caminho da bola diante do pênalti e disse: “Michael Jackson nasceu no berço convulsionado da luta contra o apertheid americano. Os negros queriam voz. Também havia um sonho na cabeça ambiciosa e complicada do pai dos meninos do Jackson Five, quando fez a macabra união de talento com sofrimento. Dentro de sua casa havia uma mina de ouro e aquela jazida tinha que ser explorada e exaurida até o osso. A qualquer preço.

Essa devastação foi exemplar. O menino Michael Jackson sofreu um processo gradual de desertificação e as conseqüências mais dramáticas de um aquecimento global, com enchentes, furacões, envenenamentos e quedas de pontes e barreiras. Michael Jackson conheceu a fama e a riqueza e se deixou seduzir pela decadência, mudando a natureza e a geografia de seu organismo, até ter medo do ar que respirava.

Drogas consentidas mantinham seu ecossistema em pé e foi a elas que recorreu para segurar a maratona de shows que vinham por aí, dando sobrevida à sua carreira e à sua resistência física. Para continuar a produzir seu próprio oxigênio, ele se devastou e se envenenou ainda mais um pouco. Seu limite foi o coração, assim como o Planeta Terra, que também tem coração, você sabia?”.

Do mesmo jeito apressado com que foi abordada, a mulher de cabelos grisalhos se desvencilhou da equipe e seguiu seu caminho.

Lenilde Ramos

NÓS E O PAPA



Tenho acompanhado com interesse os depoimentos das pessoas que tiveram sua vida marcada pela presença de João Paulo II, sempre carregados de uma emoção circunspecta e muita religiosidade. Um segundo ao lado do Papa, uma visão rápida de sua figura passando de papamóvel, um aceno ou uma benção de longe foram para sempre esmiuçados em todos os seus detalhes pelos felizardos que viveram esse privilégio.

Meu nome é Lenilde Ramos e tenho três profissões: jornalista, musicista e produtora de eventos e nunca me desliguei de nenhum desses ofícios. Tenho uma única irmã, Lenilce Ramos, que eu chamo de quase gêmea porque, além de um ano a menos de diferença e um “c” no lugar do meu “d” , ela também faz tudo que eu faço. Somos tão parecidas que até nossa voz confunde as pessoas. Isso já deu muita confusão interessante em nossas vidas.

Fiquei sabendo que João Paulo II viria pela segunda vez ao Brasil dois anos antes. Nessa época eu trabalhava no setor de Comunicação da Missão Salesiana e era voluntária no Hospital São Julião, dedicado ao tratamento de hanseníase, por coincidência, dois lugares-chave da passagem do Papa por Campo Grande. Um ano antes integrei a equipe de produção e começamos a pensar os mínimos detalhes. Seis meses antes eu acordava, me alimentava e dormia vivendo o roteiro do Papa no Hospital São Julião.

As credenciais estavam no fim e minha irmã quase gêmea não se interessava: dizia que ia acompanhar tudo pela tv. Na véspera, não sei o que deu nela, que ficou desesperada querendo ver o Papa a todo custo. Eu também, não sei o que me deu: transferi para ela minha credencial e a levei para dormir no São Julião, porque o movimento ia começar às quatro da manhã com um rastreamento da Polícia Federal.

Ela foi a primeira a pular da cama para curiosar os peritos. Depois preparou-se e foi uma das primeiras a chegar na Capela. Acompanhou a entrada de todos os convidados e não perdeu um detalhe da visita e entrou na fila do beija-mão. Eu recebi a imprensa, fui mestre de cerimônias e, em meu texto, falei que o Papa estava sendo para uma “poderosa estratégia de marketing”, para que a questão da hanseníase tivesse mais visibilidade e respeito no Brasil. No final, fui para o tecladinho tocar e cantar com amigos e pacientes.

Esse era o primeiro compromisso da agenda do Papa em Campo Grande. Dali, ele foi para a missa campal na cidade. A diretora do hospital, Irmã Silvia Vecellio e eu, aproveitamos para descer à cidade para entregar uma carta ao poderoso Gantin, o Cardeal negro que diziam ser o futuro papa. Do São Julião minha irmã quase gêmea encontrou uma carona na comitiva diplomática do Itamaraty e foi para a missa campal com meu salvo-conduto no peito. Furou a fila dos 75 eleitos e comungou das mãos do Papa. Depois da missa, com um calor de quase 40º João Paulo II foi almoçar e descansar na sede da Missão Salesiana.

Como eu trabalhava lá, já tinha visto a preparação do quarto simples do Papa, os detalhes da cama, da cômoda, dos lençóis e das toalhas. É interessante: quando a gente faz produção até curte mais os bastidores e quando vê as coisas acontecendo, a emoção vem junto com pensamentos do tipo: “será que puseram o adoçante certo para aquele Cardeal parecido com o Ugo Tognazzi?” Pois bem, lá estava minha irmã quase gêmea no interior da Missão Salesiana. Após o almoço, o Papa foi cumprimentar os funcionários da casa. Eu já estava em outra função, mas Lenilce entrou na fila e, ao cumprimentá-la, João Paulo II parou um pouquinho e olhou pra ela um pouquinho, certamente pensando com seus botões imaculados: “já vi essa pessoa hoje.”

O próximo compromisso foi na Catedral de Santo Antônio. É claro que minha irmã estava lá e, na fila. O Papa olhou-a mais demoradamente e então sorriu. O dia ainda não tinha terminado para a grande visita. Sua Santidade voltou à Missão Salesiana para jantar com o governador e autoridades. Minha irmã ali do lado do refeitório dos padres, misturada aos assessores e ao povo da produção. Nova fila de cumprimentos. Aí ao vê-la, o Papa não se agüentou: abriu um sorrisão e disse: “Signorina, Lei, un’altra volta!” (É a senhorita mais uma vez) e lhe deu um abração. O povo da fila não entendeu nada. O Papa íntimo da Lenilce?

Mais tarde, formou-se o comboio para o aeroporto. Minha irmã quase gêmea infiltrou-se no meio do cerimonial e quando o Papa a viu na fila dos cumprimentos, despediu-se dela como de um velho amigo. Foi aquele abraço e só faltou dizer: “passa lá em casa”. Minha irmã quase gêmea foi para casa e, para quem só queria ver o Papa pela televisão, foi um dia cheio de emoções.

E, para terminar a história, minha irmã tanto fez que conseguiu se mudar para a Itália um ano depois, em 1992 e está lá até hoje. Morou seus primeiros quatro anos em Roma. Um dia eu falei: “você deve estar toda semana no pé da janela do Papa lá na Praça São Pedro, não é?” Não era, nem nunca mais foi. Ela trabalhou como dama de companhia de idosos vips, passou verões com eles na Sardegna, entrou três vezes na fila dos funerais de Marcelo Mastroiani, trabalhou de faxineira na casa do costureiro Valentino, ajudando a servir jantares para Sharon Stone e Sofia Loren e a última notícia que chegou é que trabalha de segurança no atelier de Giorgio Armani. Mas, o Papa ela nunca procurou nem mais viu. Só pela telvisão.


Lenilde Ramos

O MEU 11 DE SETEMBRO





Breakfast in America

Vocês se lembram de uma música do Eduardo Dusek, chamada Nostradamus, que começa assim: “naquela manhã eu acordei tarde de bode...”. Pois é, o dia 11 de setembro de 2001 amanheceu quente e com o céu claro. Eu estava em Presidente Prudente, tinha tocado na noite anterior e queria alguma coisa nova para o repertório do próximo fim de semana.

O alvo era uma bela coleção de vinil conservada com o maior cuidado e acabei escolhendo um disco do Supertramp: Breakfast in America. Apesar de interessante, a capa não prendeu minha atenção porque, naquela hora, eu estava interessada mesmo no conteúdo. Tirei o disco com o maior cuidado, porque o dono era muito ciumento e botei pra tocar na vitrola.

Mas, aos poucos, o som que vinha da sala começou a me desconcentrar. Era da televisão e fiquei encabulada porque ninguém tinha o hábito de ligar a tv naquela hora. Isso a gente fazia só na hora do almoço para ver as notícias. No começo tentei não ligar, mas as vozes na sala também começaram a chamar a atenção e acabei saindo do quarto para ver o que estava acontecendo.

Na tela, os repórteres da Globo narravam ao vivo o que a imprensa achava ser o acidente de um avião que havia se chocado com uma das torres do World Trade Center. Do jeito que gosto de notícias, fui ficando e deixei o ensaio de lado. Logo vi outro avião atingir a segunda torre e não desgrudei mais da tv até terminar o dia e a gente ter a dimensão de toda aquela tragédia.

Quando voltei para o quarto, recolhi os discos espalhados pela cama sempre prestar muita atenção neles. Fiquei totalmente envolvida por aquela história que marcava o início do século XXI e, naquele período, nunca mais deixei de cantar New York, New York, sempre citando o fato estarrecedor.

Tempos depois voltei ao ponto de partida e, ao bater o olho na capa, não consegui mais tirar os olhos dela. O disco é de 1976 e, nessa época, Supertramp era e continua sendo uma das maiores bandas americanas, só ouvindo pra saber. Reparem nas fotos, começando pelo título do disco: “Café da Manhã na América”. A capa mostra a Ilha de Manhattan montada por copos, pratos e utensílios próprios dessa refeição. A garçonete imita a Estátua da Liberdade e a tocha é um copo de suco de laranja que está bem em cima das Torres Gêmeas.

Até aí tudo bem e vale a criatividade. Mas a logomarca do disco é um avião que voa direto pras Torres Gêmeas e alinha é tão precisa que tem até um risco marcando a trajetória. Outra foto mostra ainda os caras da banda lendo o jornal e, parece que a notícia estava chamando a atenção, porque ele até derrama o açúcar.

Fiquei intrigadíssima com a descoberta, que também foi notada por outras pessoas que curtem o Supertramp como eu, tanto que fizeram até uma brincadeira macabra com a logomarca, transformando-a em Companhia Aérea do Terror. Não foi pra menos. Mas, independente dessa incrível coincidência, quase uma profecia, fica aqui meu tributo ao Supertramp e à pessoa que me fez mergulhar nesse universo musical espetacular, que vai muito além da The Logical Song. Muito mais!

Lenilde Ramos

domingo, 31 de julho de 2011

CIRO DE OLIVEIRA É HOMENAGEADO PELO PROJETO PEIXE VIVO








FOTOS: 1: Saragosa, Lenilde, Ciro e Vitória.





















2: Lúcia e Paulo, que escreveu a história do Ciro em Cordel.











3: Conceição, Lia, Dal Farra, Ro Bigatão e Ecilda.





























4: Jonir, Fernando e Cleir.











5: Marisinha, Roca, Dênis, Maria Rita e Ciro.








6: Ciro,Mariza e Vitória.












Release divulgado em agosto de 2006.
Pulando para 2011: o prefeito Nelsinho já está
com a mão na massa para a revitalização da Praça do Peixe.



O evento que se realiza no próximo 27 de Agosto, na Praça do Peixe cria o Prêmio Margarida Neder e o confere a dez personalidades, entre elas, Ciro de Oliveira, jornalista, editor de telejornais, programador de rádio, criador de roteiros, colecionador e apresentador do Encontro de Gerações, seu programa das manhãs de domingo na 104 FM Regional, há 11 anos ininterruptos. Quem acompanha o programa percebe o apuro com que os blocos são forjados, o desfile requintado das seleções musicais e de como elas ganham vida própria quando focalizam compositores, cantores, temas, a liberdade com que o apresentador viaja no tempo e, com certeza, seu profundo conhecimento do assunto.

Campo Grande sempre teve a sorte e o privilégio de contar com missionários apaixonados pelas artes e a comunicação. Figuras empreendedoras, nem sempre valorizadas, mas, desde que o mundo é mundo é assim: de Noé, passando por Buda e Maomé. Então, vamos falar de Ciro de Oliveira, campo-grandense da gema, nascido no final da Treze de Maio (onde está o Comper), em frente do famoso “Vai ou Racha”, lendário bar no miolo do Cascudo, antigo nome do bairro São Francisco.

Antes de ir para a escola, já dominava o toca-discos de sua casa e, na adolescência, demonstrava conhecimento incomum pela música. O que se ouvia na década de 50 em Campo Grande? De tudo. Délio e Delinha, Pixinguinha, Dilermando Reis, clássicos da música paraguaia, tango, bolero, samba, marchinhas, grandes orquestras, Elvis Presley e música clássica, das valsas de Strauss ao modernismo de Stravinsky (quando fui estudar música descobri que a vinheta de um programa de notícias que meu pai ouvia era um pedacinho do Pássaro de Fogo. Исправления - tradução: “copiou?”).

O caminho do primeiro emprego levou Ciro de Oliveira à Rádio Educação Rural em 1968, pelas mãos do grande Ailton Guerra. Começou como sonoplasta e trabalhou com grandes personagens da história do Rádio em Campo Grande: Sabino Presa, Durvalino, Juca Ganso, João Bosco de Medeiros. Dois anos depois foi promovido a discotecário e, em uma semana organizou todos os discos da rádio, memorizando suas localizações. O próximo passo foi a programação musical, que se completou com a criação de roteiros e projetos de novos programas.

Em 1974 Ciro de Oliveira foi para a Rádio Difusora, levando com ele Eder Mociaro, radialista e músico, voz deliciosa falando e cantando. Na nova empresa foram colegas de Antônio Mário, que tocava no conjunto do Rádio Clube e de Wilson Minossi, moço de fina estampa que apresentava o Jornal da TV Morena. Aqui comprovamos um fato comum do antigo “Sul de Mato Grosso antes da Divisão”: o número expressivo de jornalistas-músicos que campeiam nessa terra. Que o digam: Paulo Simões, Denise Dal Farra, Og Ibrahim e, mais recentemente, o enfant terrible Elânio Rodrigues, entre outros.

Nessa época, Ciro de Oliveira era fã da Rádio JB do Rio de Janeiro e apurava o gosto por mpb e música internacional. Muito antes das FM virem para cá, Ciro já produzia o “Difusora Faixa Músical”, com todo o perfil de uma. Foi ele que apresentou Milton Nascimento, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Elis Regina aos ouvintes de Campo Grande. Além da música, envolveu-se também com o jornalismo do rádio, colhendo preciosas notícias do interior, na época em que era verdadeira batalha fazer interurbano. Santa internet!

Foi assim que surgiu o convite para trabalhar na TV Morena, empresa onde cumpriu com maestria, uns 25 anos de trabalho. A dedicação integral à música e ao jornalismo aproximou-o dos festivais e proporcionou-lhe estreita convivência com o movimento cultural de Mato Grosso do Sul. Às vezes gastava o salário quase inteiro comprando discos que foram compondo um acervo de peso num verdadeiro encontro de gerações. Passou a investir em um banco de dados que começou com discos de 78 rotações, passando por Long Plays, depois para os CDs e daqui em diante, só Deus e tecnologia sabem. Hoje sua discoteca já passa de 5 mil exemplares. Quando entrei pela primeira vez nessa alcova musical, me escapou um “Uau... estou na caverna do tesouro!”.

Além do acervo comprado, Ciro ganhou muito material dos marqueteiros de gravadoras que, ao tomarem conhecimento de seu talento, sempre lhe presentearam com réplicas de discos raros, que ele cataloga, mantém, pesquisa e utiliza no programa que não poderia ter outro nome: Encontro de Gerações.

(In Memorian) Apesar da televisão tomar-lhe tempo, fazendo-o acordar de madrugada para pegar no batente às cinco da manhã, Ciro de Oliveira nunca deixou o rádio e sempre acompanhou tudo o que se fez nessa área na cidade. Assim, percebeu que as manhãs de domingo eram muito apáticas e poderiam ser melhor aproveitadas, principalmente num dia em que quase todo o mundo está em casa. Assim nasceu em 1995 o Encontro de Gerações, programa idealizado, produzido e apresentado por Ciro de Oliveira na 104 FM Regional.

A homenagem a Ciro de Oliveira é motivada pela vida inteira dedicada à música, pelo valor que sempre conferiu aos projetos culturais de Mato Grosso do Sul e pelo entusiasmo com que acompanha os eventos da Praça do Peixe. Salve Ciro de Oliveira!


Lenilde Ramos

quarta-feira, 22 de junho de 2011

SER (FILHA DA) MÃE É PADECER NO PARAÍSO





Já começo dizendo que, com essa crônica, estou me arriscando a um processo caseiro, mas como tudo aconteceu em família, espero que, se pintar qualquer entrevero, que o Foro escolhido seja o recesso do lar. Nessa hora, eu me lembro da música dos Titãs: Família...família...”. É por aí.

A década de setenta estava acabando gloriosamente e nós, entrados nos vinte anos, já sabíamos o que fazer da vida. Os amigos começavam a se espalhar por esse mundão de Deus, perseguindo seus sonhos. Eu continuava firme em Campo Grande, casada e mãe do primeiro filho. Minha irmã tinha ido para Cuiabá, trabalhar numa empresa de automóveis e, nos finais de tarde, ia refrescar a cuca nos barzinhos ao lado da Universidade Federal.

Foi num desses happy hour que ela conheceu um rapaz diferente, recém- chegado do Rio de Janeiro, grandão, bonitão, hiper descolado e engatou com ele a maior conversa. Foi amor à primeira vista e não ligaram pra mais ninguém naquela noite. Na segunda, estavam vidrados um no outro e na terceira, resolveram que a vida não tinha sentido com a distância de alguns bairros que os separavam e resolveram morar juntos.

Foram se conhecendo melhor, como marido e mulher, já que minha mamma italiana diz: “Juntado com fé, casado é”. Depois de alguns meses ela trouxe o companheiro para conhecer Campo Grande, ele se encantou com a cidade, resolveu vir de mudança e alugaram uma casa bem em frente à minha. Maravilha, nada como a família por perto. Nesse período, deu a coincidência de ficarmos grávidas. Eu primeiro e, três meses depois, ela. Foi também nesse tempo que fiquei conhecendo alguns hábitos do casal, que adorava bicho, sem se importar se eram domésticos ou meio selvagens.

Naquela época, ainda não existiam regras e leis para essa convivência ou, se existiam, a gente não tomava muito conhecimento. O povo criava o bicho que desse, sem problema nenhum. Quem não se lembra dos papagaios que aprendiam a cantar até o Hino Nacional? E da belezura que era o jardim do seu Lúdio Coelho, que até parecia um mini-zoológico? Pois bem, fora cachorro e gato, minha irmã e o marido tinham um filhote de jacaré, um filhote de veado e, se bem me lembro, um filhote de capivara. O quintal era de bom tamanho e acomodava bem os bichinhos.

Um dia precisei falar com ela, meio de improviso, atravessei a ruazinha, a porta estava aberta e fui entrando. Não a vi. Chamei, ninguém respondeu e comecei a abrir as portas. De repente, ao abrir o quarto de hóspedes, dou de cara com uma centena de pintinhos amarelinhos, bonitinhos, piando que nem um coro atonal. A luz havia sido rebaixada para aquecê-los e, antes que eu pisasse ou deixasse algum escapar pelo corredor, fechei a porta com cuidado. Que susto!!! Aquilo sim era vontade de criar bicho.

Achei minha irmã no fundo do quintal e falei que não era aconselhável estar grávida e conviver com tanto bicho por perto. Realmente, pouco tempo depois, ela começou a se sentir fraca, debilitada e o primeiro exame foi cruel: Toxoplasmose, doença perigosa causada pelo protozoário Toxoplasma Gondii, que ao atingir gestantes, faz os bebês nascerem com anomalias, alterações físicas e mentais. Fiquei apavorada, com o diagnóstico e também, com a constatação de que o casamento deles já estava mal das pernas.

Minha irmã queria separar e o namorido não pensava bem assim. Queria criar o filho com ela, o primeiro dos dois, tentar construir uma vida juntos e passar por cima das diferenças. Aqui entra um detalhe importante para dizer que minha irmã é maravilhosa, inteligente, quase um gênio para algumas coisas, mas braba que nem “catiça de gato”. Com ela, escreveu não leu, o pau comeu. E, já que estava resolvida, não teve acordo.

O médico falou sério e explicou o grande perigo que o bebê corria e não poderia garantir, de forma alguma, que não nascesse cego, por exemplo. Inclusive alertou-a que a lei a amparava se fosse o caso de fazer um aborto. Ela recusou essa proposta, definitivamente. Diante disso, o médico não pode fazer nada, a não ser, partir para um tratamento rigoroso. Começou aí uma maratona: dar destino aos bichos da casa, consultas periódicas, exames e até punções na espinha. Ela só não estava conseguindo convencer o companheiro a ir embora.

Um belo dia ele sumiu. Isso mesmo, evaporou, sem ir lá em casa nem para se despedir, já que tínhamos boa amizade. Minha irmã não dizia nada, só que ele havia resolvido de uma vez por todas. Eu achava estranha essa explicação e tentei assuntar com os vizinhos. Os dois lados disseram que, depois de uma discussão, o rapaz saiu correndo pelos fundos, pulou o muro e continuou correndo até ninguém vê-lo mais. O tempo foi passando e ele nunca mais apareceu, nem deu notícias.

O único bicho que sobrou foi a pulga que ficou atrás da minha orelha. Enquanto isso, nossas barrigas cresciam vistosas e, apesar do tratamento, dos remédios e preocupações, a gravidez de minha irmã seguia firme. Nem quisemos fazer ultrassom, pra curtir a surpresa. Com todos os cuidados que cercavam os preparativos, o médico afirmou que não havia condições para um parto normal e que ela iria passar por uma cesariana. Com esse aviso, ela não se preocupou mais com os detalhes que eu insistia em lhe passar: exercícios de respiração, ginástica de grávida e preparação psicológica.

Quando ela entrou no sétimo mês, nasceu meu segundo filho, lindo demais, desses bebês rechonchudos e risonhos, de capa de revista. Mesmo com o maiorzinho de três anos e o nenê novo, não deixei de acompanhar os últimos meses de gravidez de minha irmãzinha geniosa, até que chegou finalmente a hora do parto. Deixei o mais velho com os avós, peguei o carro, ajeitei o bebê na cadeirinha e levei minha irmã para a maternidade. Chegando lá, ela foi para um apartamento popular de três leitos, dois já ocupados. Uma mulher estava gemendo com as contrações e a outra tinha acabado de parir e descansava.


As enfermeiras prepararam a parturiente, que trocou a roupa por aquela meia camisola, uma espécie de camisa branca, sem mangas, curta, no meio das coxas e aberta atrás, só amarrada com um lacinho. E sem nada por baixo, óbvio. Tudo pronto para o médico assumir, literalmente, a operação e ele chegou. Só que não era ele. Era outro!!! Uai... cadê o doutor que fez o pré-natal com todo o cuidado, preocupado com a situação do bebê e garantidor da cesariana com hora marcada?

O médico novo não tinha uma cara amistosa e foi falando logo: “O doutor fulano teve que viajar para um congresso na Bahia e pediu que eu fizesse teu parto”. Até aí tudo bem. Era médico, estava vestido de médico e demonstrava muita autoconfiança. Saiu para cuidar de outras coisas e voltou rapidinho, quando as enfermeiras o alertaram que as contrações estavam começando. Ele deu uma olhada na paciente e emendou: “Maravilha. Parece que a senhora vai desenvolver uma excelente dilatação. Ótimo. Não vamos precisar fazer cesárea. Vai ser um belo parto normal!”.

Minha irmã se arrepiou e foi logo dizendo: “Peraí doutor, meu médico ficou quase nove meses na minha orelha dizendo que ia ser cesariana. Não me preparei pra isso e não estou psicologicamente apta pra encarar um parto normal. Faça a cesariana”. O médico encrespou e disse: “Quem resolve se vai ser normal ou cesárea aqui sou eu. A senhora está dilatando bem e vai ser normal !!!”. Aí virou um bate-boca daqueles. Minha irmã falava, o médico retrucava e começou a chegar gente do corredor para ver o que estava acontecendo.

A paciente do lado começou a gemer ainda mais, de nervoso e a que estava dormindo, acordou assustada. A sorte que o nenê dela estava no berçário. Eu entrei no meio dos dois, com meu bebê no colo, tentei puxar o médico para o lado e falei: “Doutor, o senhor não conhece minha irmã. Ela é inflexível e nunca perde uma briga. Seria melhor o senhor fazer a cirurgia pra tudo acabar na santa paz”. Ele respondeu: “A senhora não se meta. Quem dá a última palavra aqui sou eu”. E me expulsou de lá. Mandou que a enfermeira me entregasse os pertences de minha irmã, roupas e bolsa e me despachou para casa dizendo: “Quando tudo terminar, alguém vai ligar avisando”.

Ainda tentei mmm... ôps...ggg... , mas nada adiantou. Peguei as coisas dela junto com meu bebê e fui para o carro. Ele tinha mamado enquanto as enfermeiras depilavam a quase mamãe e logo caiu no sono. Mal cheguei em casa, tocou o telefone. Se existisse celular e eu tivesse um naquela época, a notícia não teria chegado tão rápido. Será que o filho de minha irmã já tinha nascido? Aleluia! Graças a Deus!

Foi o tempo de descer com meu bebê, entrar e pegar o telefone que não parava de tocar. Do outro lado estava minha irmã, a própria. Não era possível que ela mesma estivesse me dando a grande notícia. Alguma coisa est.... Nem deu tempo pra pensar, porque ela berrava no aparelho: “Cadê minha bolsa!!! Quero minha bolsa!!!“. Eu, desesperada, tentando manter a calma perguntava: “O que aconteceu??? O que tem dentro da sua bolsa pra você estar assim. E seu filho, já nasceu???”.

Ela dizia gritando: “Traz logo minha bolsa pra cá. Se esse médico não se convencer com palavras, vou ter que usar outros argumentos !!!”. E eu tentava dizer: “Mas, você não está na sala de parto?”. E ela: “Eu estou aqui na calçada do hospital, num orelhão !!!”. Puta merda, aí eu gelei e, no próprio telefone comecei a ouvir outras vozes misturadas com a dela: “Por favor, senhora. O médico vai fazer a cesariana. Vamos voltar para dentro”. Minhas pernas estavam moles e eu caí no sofá, com uma tremenda batedeira no coração.

Meu Deus, comecei a pensar rápido, ao mesmo tempo que imaginava minha irmã com aquela camisolinha fajuta de paciente, com o traseiro à vista de quem passasse por aquele orelhão e as enfermeiras tentando levá-la para dentro. Sem contar a dilatação, que já devia estar no ponto, porque boas parideiras como somos, não era à toa que o médico novo havia elogiado o panorama. Chamei rápido a vizinha, pedi que cuidasse do meu bebê, que dormia que nem um anjo e corri para abrir a tão desejada bolsa, quando dei de cara com um trinta e oito niquelado, como o daquela música de Délio e Delinha. Uau !!! Era essa bolsa que estava perto do meu bebê na cadeirinha??? Era esse o argumento fatal??? Tremi nas bases e corri para o hospital.

Quando cheguei lá, a maternidade estava de ponta cabeça, num alvoroço de fazer inveja. Todo mundo de olho arregalado, da recepção à sala de parto. Uma enfermeira me avisou que o médico furioso fez a cesariana, costurou a barriga dela e se mandou, espumando, sem nem deixar receita. Disse também que o bebê era uma menina, linda, perfeitinha, sem faltar um dedinho e que o pediatra se espantou com a saúde e a vitalidade da criança. Também me disse que as colegas se encarregaram dos finalmentes do parto e procuraram outro médico para aviar uma receita.

Fui caminhando devagar até o berçário e, emocionada, fiquei contemplando minha sobrinha, que dormia como um anjinho. Nem parece que tinha acabado de nascer, meio carequinha, gordinha, enroladinha num cueiro. Um verdadeiro milagre da natureza! Depois dessa visão, fui ver minha irmã, que também dormia, mas acho que por conta de algum sossega leãozinho, porque ela não iria se entregar tão fácil. Também fiquei um tempão ali, olhando para ela, me lembrando de nossas brigas da infância, dos arranca-rabos de irmã, das peripécias lendárias que a deixaram famosa, da coragem desmedida que ela tinha para as coisas e da paixão com que se entregava às suas vontades. Outro verdadeiro milagre da natureza!

Saí de lá e fui para o mesmo orelhão do último round, contar a novidade para a família. Falei da bolsa para meu marido e ele correu para casa, preocupado. Quando cheguei lá, ele só me olhou e disse: “É de brinquedo”. Respirei fundo e pensei: “Mas, não é brinquedo!”.

Dedico este conto à minha sobrinha, Letícia Helena,
linda de viver, inteligente e talentosa, que faz Artes
Cênicas em Brasília e que já tem um filho chamado
Raul, em homenagem a Raul Seixas.

Lenilde Ramos

segunda-feira, 20 de junho de 2011

LUZES DA RIBALTA


Mato Grosso do Sul tinha acabado de nascer e Campo Grande virou capital. Tudo por aqui era efervescência, tudo por se fazer e todo mundo com a mão na massa. Tive a fantástica oportunidade de compor a equipe de transição que criou a primeira Fundação de Cultura, em 1978 e a honra de ser a primeira técnica da área de música, em 1979. Professora Glorinha Sá Rosa era nossa capitã e, sempre ligada nas raízes e na pluralidade (leu sem tropeçar?), conseguiu que a FUNARTE e o novo Governo se acertassem para que o Projeto Pixinguinha nos incluísse em seu roteiro nacional.

Entramos em 1980 com essa perspectiva e o Pixinguinha estava bombando nos palcos brasileiros. O elenco era uma verdadeira constelação do que havia de melhor na música popular brasileira, desde a velha guarda até a moçada que estava começando. Foi assim que o interior do país travou contatos imediatos de primeiro grau com Moreira da Silva, Cartola, Elizeth Cardoso, Banda de Pífanos de Caruaru, Jackson do Pandeiro, Marlene, Emilinha Borba, Ângela Maria, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Nana Caymi e os iniciantes Djavan, Alceu Valença, Marina Lima e Elba Ramalho, só pra citar alguns. E tudo isso por míseros R$ 6,00, no Teatro Glauce Rocha.

O Pixinguinha deixou saudades e foi escola para toda uma geração de campo-grandenses, quem assistiu e quem trabalhou, acompanhando artistas, diretores e técnicos que formavam as delegações. Cada elenco fazia cinco shows em cada cidade. Chegava domingo, apresentava-se de segunda a sexta e embarcava no sábado para a próxima. No outro domingo começava tudo de novo, com a chegada de uma nova turma. Cada circuito durava sete semanas. Então, era uma euforia constante com a chegada de novas estrelas e figuras diferentes, ousadas, de todos os tipos, cores e performances.

Os produtores responsáveis pelo projeto, em cada uma das capitais, eram todos do Rio de Janeiro, escolhidos a dedo pela FUNARTE. Como técnica da área de música e, atirada como fui, sempre dava um jeito de ir à Cidade Maravilhosa, até por conta da música erudita e outros projetos e assim, fiz amizade com as figuras de lá. Quando chegou a vez de Campo Grande, o pessoal do Pixinguinha já me conhecia o suficiente e, pela primeira vez, sugeriram que não havia necessidade de mandar ninguém do Rio. A produtora de Campo Grande seria eu. Para mim, foi como ganhar na loteria, juntar a fome com a vontade de comer e todos os ditados possíveis e digo a vocês, que todas as histórias que eu vivi nos quatro anos que administrei o projeto, dariam um livro, que começo a escrever agora.

Só para terem uma ideia: nesses quatro anos convivi com umas trezentas pessoas do grande mundo da música brasileira, tive dois filhos, fora o mais velho que cresceu no meio dos artistas. Como os artistas permaneciam uma semana em cada cidade, acabavam ficando entediados e procuravam coisas para passar o tempo. Aí é que surgiam as histórias mais malucas. Para vocês imaginarem: Elizeth Cardoso se encantou com meu bebê de sete meses e pediu para ser a babá dele na sua semana. Na outra, foi Egberto Gismonti que se encantou com o mais velho e cuidou dele pra mim, por uma semana também.

Havia os mais afoitos que não queriam ficar à mercê das kombis que os levavam em grupo para almoços, ensaios e shows e alugavam seus próprios carros. Havia os mais caladinhos, os que faziam amizade e sumiam com a galera pela cidade, os que eram convidados para almoços e jantares chiquérrimos de autoridades e socialites locais, os que organizavam suas próprias festas nos apartamentos do hotel, com as gatinhas da cidade, os discretos, os que desfilavam os modelos mais ousados do verão carioca ou das tardes nova-iorquinas e os que já estavam habituados a viajar, sem precisar de Kombi ou carro alugado. O Pixinguinha passou como uma avalanche por Campo Grande.

Nem sei por onde começar. Poderia até ser por uma história de glamour, como a vinda de Elizeth Cardoso, que coincidiu com a semana do aniversário da cidade, por volta de 26 de agosto. Não era à toa que o título dessa grande dama era A Divina. Elizeth era uma mulher linda, de fino trato e muito divertida. Gostava de caldo de cana, que eu sempre levava para ela nos ensaios. Uma vez quis conhecer a feira livre, de tanto que a gente falava do sobá. A noite estava gelada, Elizeth sentou-se bem pertinho do braseiro dos espetinhos para se aquecer, saiu de lá, tomou um golpe de ar e... perdeu a voz. A voz perdeu a voz e eu gelei!!! O show da próxima noite teve que ser cancelado. Ela passou o dia no Proncor da Maracaju, mas voltou mais altiva e poderosa do que antes e se arrumou toda para o novo show.

A história da rouquidão de Elizeth Cardoso movimentou a sociedade, que lotou o Glauce Rocha. A Divina arrumou-se com um longo branco, rebordado de canutilhos, prendeu os cabelos, colocou brincos e colar maravilhosos e entrou no palco. A noite ainda estava fria, mas ela dispensou a echarpe. A primeira música era um solo, à meia luz, acompanhado apenas por um violão. Eu estava nos bastidores, apreensiva com a divina garganta, quando tive um choque e quase enfartei. Embaixo do praticável (aquele estrado) onde ficava a bateria, um cachorro dormia a sono solto. Pensei milhares de coisas ao mesmo tempo. Mas, como entrar no palco e quebrar o divino clima? Nem pensar!

Os acordes do violão e a voz suave de Elizeth nem arranharam os ouvidos do cão. Mas, quando a música terminou, os aplausos o despertaram. Ai, meu Deus, esse cachorro vai causar um baita de um estrago. E se ele fosse brabo? E se estranhasse a situação e partisse pra cima da divina? E se o público o visse? Qual seria a reação? Nesse meio tempo, começou a segunda música, ainda com voz e violão e o cachorro, pensando que era canção de ninar, só abaixou a cabeça e voltou a dormir. Mas, a próxima tinha bateria, aí a coisa podia ficar feia. Mais que depressa chamei o chefe da segurança.

Ele chegou no meio da música e foi explicando que (naquela época), alguns cachorros, os que eram operados pela Veterinária, acabavam ficando pela Universidade e se achavam donos do pedaço. Como o teatro era quentinho, aquele resolveu ficar por ali. Quando a bateria deu os primeiros requipes, o vira-lata acordou cheio de preguiça e escancarou a boca num bocejo em câmara lenta. Depois se levantou devagar, ainda meio sonâmbulo e se esticou todinho, num alongamento perfeito. Aí eu engoli seco, porque os músicos viram o cão e me olharam, apavorados. No olho, nos combinamos de ninguém se mexer, para não chamar a atenção da divina, deslumbrante em seu vestido branco de estrela de cinema.

Nessa hora, enquanto as primeiras filas esticavam os pescoços querendo entender o que estava se mexendo, se era efeito do show ou o quê, o chefe da segurança entrou rápido no palco e, mais rápido ainda, juntou o cachorro embaixo do braço, sem dar ao bicho nenhuma chance de reação. Eu corri para os fundos, abri a porta de serviço e o homem atirou o cão na noite gelada, como um arremessador de peso num estádio olímpico. Nem deu tempo de ouvir os “caiaim...caiaim...”, porque fechei a porta e chaveei. Ufa, suspiramos juntos. Eu estava meio trêmula e voltei a meu posto na coxia, para enfim, curtir o show. Procurei uma cadeira e sentei bem devagar.

Passaram-se uns quinze minutos e, no meio dos aplausos emocionados da plateia, sinto um vulto passar do meu ladinho. Ai, ui, será que era assombração? Teatros sempre têm disso e o Glauce Rocha não escapava de histórias de fantasmas. Um zelador de lá, sujeito legal, meio vesgo, sempre contava uns causos, mas a gente achava que era mais a vista turva, que fantasma de verdade. Mas aquela eu não quis acreditar. Era o cachorro de novo. O mesmo. De tão acostumado com o lugar, ele já tinha se recomposto, esgueirou-se pela bilheteria vazia (a bilheteira devia estar assistindo), passou pelas cortinas dos fundos, foi beirando a parede, subiu a escadinha (o bicho era de casa mesmo), passou por mim e foi se deitar no mesmo lugar, embaixo do praticável.

Essa entrada triunfal, já com mais iluminação, não deu pra esconder. O público viu que era um cachorro de verdade e vivo!!! Até a divina estranhou a reação das pessoas à sua frente e, antes que ela se virasse, eu mesma fiz como o chefe da segurança. Entrei que nem um relâmpago no palco, abracei o cachorro e saí com ele, que nem um foguete. Com a confusão, o chefe da segurança já estava lá e, dessa vez não arremessou o cachorro. Chamou um ajudante, foram para o estacionamento, pegaram o carro e se mandaram em direção à cidade. Me disse ele, que deixou o cachorro bem longe, no centro e escalou um rapaz para ficar de olho nos arredores do teatro, pelo resto da temporada.

Por ali o cão da ribalta não apareceu ou não teve chance de subir novamente no palco. Mas teve gente que jurou tê-lo visto vagando de novo pela Universidade.

Lenilde Ramos

sexta-feira, 17 de junho de 2011

MARIA GADU, FEIÚRAS E BONITEZAS





Maria Gadú cantou em Campo Grande num começo de noite do primeiro domingo de junho e o show rendeu pra todo mundo. O Parque das Nações Indígenas estava coalhado de gente. Rendeu pra cantora, com certeza um bom cachê, rendeu para os organizadores, para o público que curtiu a voz e a interpretação espetacular dessa quase adolescente e até rendeu para mim, que vendi alguns livros de minha História sem Nome e fui contratada para tocar na festa junina do Espaço Imaginário (Alê Basso estava lá com toda a família).

Rendeu também pra Juci Ibanez, quando disse no Facebook que achou Maria Gadú feia. Minha amiga cantora passou por um verdadeiro corredor polonês virtual, com gente querendo crucificá-la, jogar pedra e enforcá-la com as próprias mãos. A página dela bombou e nunca vi tantos comentários. Alguns, acabaram a amizade ali mesmo e outros a defenderam, separando feiúra de talento artístico e invocando o nariz adunco de Maria Bethânia.

Nessa hora me lembrei dos primos Ramalho, Zé e Elba e da falecida Aracy de Almeida, que Deus a tenha com todo o seu mau humor. Pra não ir muito longe, temos o Paulo Miklos dos Titãs, que não é nenhum Gianechini e, aqui perto, nosso glorioso Paulo Simões, que nunca foi um Adônis e nós mesmas: a geradora da polêmica e quem escreve essa crônica. Já tive meus tempos de glória, corpídeo de gazela e pernonas enfeitadas de minissaias e Juci também já foi mais magrinha, mas acreditamos e defendemos nosso talento. Até assustei a Ju uma vez, quando ela me disse: “E aí, Lelê, vamos unir nossas afinidades musicais e produzir um show. Você tem alguma sugestão de título?”. Pensei, pensei e soltei na lata: “Que tal, Barangas na Menopausa”. Juju levou um susto e suspirou: “Pô, Lelê, também não precisa esculachar, né?”.

Apesar de mergulhada de cabeça no século XXI e despida de preconceitos, confesso que me perdi no Parque das Nações Indígenas, quando anunciaram Maria Gadú, porque o povo começou a gritar e a aplaudir e eu procurava a estrela até perceber que a tinha confundido com um músico. Era ela! Nessa hora, a gente começa a pensar no que é bonito e no que é feio de verdade nesse mundo, na exigência social de você corresponder a um modelo europeu caucasiano e na beleza fantástica de figuras que estão longe dos ditos padrões. Esse caminho rende panos pra mangas filosóficas e nos propõe um exercício crucial de aceitação, principalmente quando a idade vai chegando.

O show da Maria Gadú também me rendeu um questionamento. Cheguei cedo ao Parque das Nações e até a banda Dimitri Pellz entrar, rolou som mecânico. Depois da Dimitri, mais som mecânico. Foi aí que pensei: “Pô, com tanta gente no pedaço, um público maravilhoso, não seria mais útil e produtivo aproveitar o precioso espaço para tocar o som mecânico de nossas bandas? Temos uma cena de rock que faz inveja a muitos estados brasileiros e, aquele momento seria perfeito pra galera ouvir nossos trabalhos, em vez de um som que a gente pode ouvir a qualquer hora, em qualquer rádio, qualquer bar ou qualquer balada”.

Cada tipo de show das estrelas seria uma chance para ocuparmos espaço sonoro, com a riqueza de nossa diversidade musical. Seria bonito investir tudo no que é nosso, valorizar cada centímetro do que é nosso, ocupar cada espaço útil com o que é nosso, agregar valor ao que é nosso, para dividirmos de igual pra igual nosso talento e multiplicarmos nossas possibilidades, assim como uma Maria Gadú encontrou sua chance e tantos outros artistas, feios ou bonitos por aí, também encontraram.

No dia 31 de maio, lancei minha História sem Nome. Fiquei honrada com a força que a Universidade Federal de MS, para que esse projeto se concretizasse e feliz com o apoio da FUNDAC para a cerimônia de lançamento na Morada dos Baís. Os amigos perguntavam: “Quem vai tocar no evento?”. Eu dizia: “Todo mundo”. E eles queriam entender o que eu estava dizendo.

A festa foi bonita e o público, maravilhoso, mas o que me deixou tão orgulhosa quanto lançar meu primeiro livro, foi ter enchido um pen drive de oito giga, com centenas de músicas, de Délio e Delinha a Jennifer Magnética, passando pelo instrumental de Miguelito e as pessoas diziam: “Que som legal. Quem está tocando?” E eu alardeava aos quatro ventos: “É tudo música de Mato Grosso do Sul !!!”. Isso não é bonito?


Lenilde Ramos